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domingo, 7 de outubro de 2012

A Existência de Deus

Impulsionados por dois tão grandes eventos que estão acontecendo em nossa Santa Mãe Igreja, o Sínodo dos Bispos para a Nova Evangelização e a abertura do Ano da Fé, bem como retomando nosso trabalhos neste blog, iremos publicar alguns textos referentes às reflexões elaboradas a partir do Catecismo da Igreja Católica sobre nossa fé. Evidentemente, não são textos nossos, mas extraídos do site oficial da prelazia do Opus Dei no Brasil, que muito colaboram na propagação e transmissão da fé cristã.


Deus existe? É a grande pergunta que cada pessoa se faz. Porque se Deus existe, tudo muda: a vida, o amor, a amizade, a dor... Este texto doutrinal trata desta pergunta fundamental.


1. A dimensão religiosa do ser humano

A dimensão religiosa caracteriza o ser humano desde suas origens. Purificadas da superstição, devidas, em última análise, à ignorância e ao pecado, as expressões da religiosidade humana manifestam a convicção de que existe um Deus criador, do qual dependem o mundo e nossa existência pessoal. Se é verdade que o politeísmo tem acompanhado muitas fases da história humana, também é verdade que a dimensão mais profunda da religiosidade humana e da sabedoria filosófica tem procurado a justificação radical do mundo e da vida humana em um único Deus, fundamento da realidade e cumprimento de nossa aspiração à felicidade (cf. Catecismo, 28)[1]. 

Apesar de sua diversidade, as expressões artísticas, filosóficas, literárias etc, presentes nas culturas dos povos, possuem em comum a reflexão sobre Deus e sobre os temas centrais da existência humana: a vida e a morte, o bem e o mal, o destino último e o sentido de todas as coisas [2]. Como estas manifestações do espírito humano testemunham ao longo da história, pode-se dizer que a referência a Deus pertence à cultura humana e constitui uma dimensão essencial da sociedade e dos homens. A liberdade religiosa representa, portanto, o primeiro dos direitos, e a busca de Deus, o primeiro dos deveres: todos os homens, “pela sua própria natureza e por obrigação moral estão obrigados a dar sua adesão à verdade, uma vez conhecida”[3]. A negação de Deus e a tentativa de excluí-lo da cultura e da vida social e civil são fenômenos relativamente recentes, limitados a algumas regiões do mundo ocidental. O fato de que as grandes interrogações religiosas e existenciais tenham permanecido invariáveis no tempo[4] desmente a ideia de que a religião esteja circunscrita a uma fase “infantil” da história humana, destinada a desaparecer com o progresso do conhecimento. 

O cristianismo assume tudo o que há de bom na investigação e na adoração de Deus, manifestadas historicamente pela religiosidade humana, descobrindo, entretanto, seu verdadeiro significado, o de um caminho rumo ao único e verdadeiro Deus que Se revelou na história da salvação entregue ao povo de Israel e que veio ao nosso encontro, fazendo-Se homem em Jesus Cristo, Verbo Encarnado [5]. 

2. Das criaturas materiais até Deus

A inteligência humana pode conhecer a existência de Deus aproximando-se d’Ele por um caminho que tem como ponto de partida o mundo criado e que possui dois itinerários, as criaturas materiais e a pessoa humana. Embora este caminho tenha sido desenvolvido especialmente por autores cristãos, os itinerários que, partindo da natureza e das atividades do espírito humano levam até Deus, têm sido expostos e percorridos por muitos filósofos e pensadores de diversas épocas e culturas. 

As vias em direção à existência de Deus também se chamam “provas”, não no sentido que as ciências matemáticas e naturais dão a esse termo, mas como argumentos filosóficos convergentes e convincentes, que o indivíduo compreende com maior ou menor profundidade dependendo de sua formação específica (cf. Catecismo, 31). Que as provas da existência de Deus não podem ser entendidas no mesmo sentido das provas utilizadas pelas ciências experimentais se deduz com clareza do fato de que Deus não é objeto de nosso conhecimento empírico. 

Cada via em direção à existência de Deus alcança somente um aspecto concreto ou dimensão da realidade absoluta de Deus, o do específico contexto filosófico no qual a via se desenvolve: “partindo do movimento e da evolução, da contingência, da ordem e da beleza do mundo, pode chegar-se a conhecer a Deus como origem e fim do universo” (Catecismo, 32). A riqueza e a imensidão de Deus são tais que nenhuma dessas vias, por si mesma, pode chegar a uma imagem completa e pessoal de Deus, mas apenas a alguma faceta dela: existência, inteligência, providência etc. 

Entre as chamadas vias cosmológicas, umas das mais conhecidas são as célebres “cinco vias” elaboradas por São Tomás de Aquino, que contêm em boa medida as reflexões de filósofos anteriores a ele; para sua compreensão, é necessário ter algumas noções de metafísica [6]. As primeiras duas vias propõem a ideia de que as cadeias causais (passagem da potência ao ato, passagem da causa eficiente ao efeito) que observamos na natureza não podem retroceder ao infinito, mas devem apoiar-se em um primeiro motor e sobre uma primeira causa; a terceira via, partindo da observação da contingência e limitação dos entes naturais, deduz que sua causa deve ser um Ente incondicionado e necessário; a quarta, considerando os graus de perfeição participada que se encontram nas coisas, deduz a existência de uma fonte para todas estas perfeições; a quinta via, observando a ordem e o finalismo presentes no mundo, consequência da especificidade e estabilidade de suas leis, deduz a existência de uma inteligência ordenadora que seja também causa final de tudo. 

Estes e outros itinerários análogos foram propostos por diversos autores com diversas linguagens e formas distintas, até os nossos dias. Portanto, mantêm sua atualidade, ainda que para compreendê-los seja necessário um conhecimento das coisas baseado no realismo (em contraposição a formas de pensamento ideológico), e que não reduzam o conhecimento da realidade somente ao plano empírico experimental (evitando o reducionismo ontológico), de modo que o pensamento humano possa, em suma, subir, dos efeitos visíveis às causas invisíveis (afirmação do pensamento metafísico). 

O conhecimento de Deus é também acessível ao sentido comum, isto é, ao pensamento filosófico espontâneo, comum a todo ser humano, como resultado da experiência existencial de cada um: a admiração ante a beleza e a ordem da natureza, a gratidão pelo dom gratuito da vida, o fundamento e a razão do bem e do amor. Este tipo de conhecimento também é importante para captar a que sujeito se referem as provas filosóficas da existência de Deus: São Tomás, por exemplo, termina suas cinco vias unindo-as com a afirmação: “e isto é o que todos chamam Deus”. 

O testemunho da Sagrada Escritura (cf. Sb 13, 1-9; Rm 1, 18-20; At 17, 22-27) e os ensinamentos do Magistério da Igreja confirmam que o intelecto humano pode chegar ao conhecimento da existência de Deus criador, partindo das criaturas[7] (cf. Catecismo, 36-38). Ao mesmo tempo, quer seja a Escritura, quer seja o Magistério, advertem que o pecado e as más disposições morais podem tornar mais difícil este reconhecimento. 

3. O espírito humano é manifestação de Deus

O ser humano reconhece sua singularidade e preeminência sobre o resto da natureza. Ainda que participe de muitos aspectos de sua vida biológica com outras espécies animais, ele se reconhece único em sua fenomenologia: reflete sobre si mesmo, é capaz de progredir cultural e tecnicamente, percebe a moralidade de suas próprias ações, transcende com seu conhecimento e sua vontade, mas, sobretudo, com sua liberdade, o restante do cosmos material[8]. Em conclusão, o ser humano é sujeito de uma vida espiritual que transcende a matéria da qual, entretanto, depende[9]. Desde as origens, a cultura e a religiosidade dos povos têm explicado esta transcendência do ser humano afirmando sua dependência de Deus, de quem a vida humana contém um reflexo. Em sintonia com este sentir comum da razão, a Revelação judaico-cristã ensina que o ser do homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26-28). 

A pessoa humana está, ela própria, a caminho, rumo a Deus. Existem itinerários que conduzem a Deus partindo da própria experiência existencial: “Com sua abertura à verdade e à beleza, com seu sentido do bem moral, com sua liberdade e a voz de sua consciência, com sua aspiração ao infinito e à felicidade, o homem se interroga sobre a existência de Deus. Nestas aberturas, percebe sinais de sua alma espiritual”(Catecismo, 33). 

A presença de uma consciência moral que aprova o bem que fazemos e censura o mal que realizamos ou queríamos realizar, leva a reconhecer um Sumo Bem ao qual estamos chamados a nos conformar, do qual nossa consciência é como que um mensageiro. Partindo da experiência da consciência humana e sem conhecer a Revelação bíblica, vários pensadores desenvolveram, desde a antiguidade, uma reflexão sobre a dimensão ética do agir humano, reflexão da qual é capaz todo homem enquanto criado à imagem de Deus. 

Junto à própria consciência, o ser humano reconhece sua liberdade pessoal, como condição do próprio atuar moral. Nesse reconhecer-se livre, a pessoa humana vê em si a correspondente responsabilidade das próprias ações e a existência de Alguém ante o qual é responsável; este Alguém deve ser maior que a natureza material, e não inferior, mas superior, aos nossos semelhantes, também chamados a ser responsáveis como nós próprios. A existência da liberdade e da responsabilidade humanas conduz à existência de um Deus fiador do bem e do mal, Criador, legislador e remunerador. 

No contexto cultural atual, nega-se frequentemente a verdade da liberdade humana, reduzindo a pessoa a um animal um pouco mais desenvolvido, mas cujo agir estaria regulado fundamentalmente por impulsos necessários; ou identificam a sede da vida espiritual (mente, consciência, alma) com a corporeidade dos órgãos cerebrais e dos processos neurofisiológicos, negando assim a existência da moralidade do homem. A esta visão pode-se responder com argumentos que demonstram, no âmbito da razão e da fenomenologia humana, a auto-transcendência da pessoa, o livre arbítrio que atua também nas escolhas condicionadas pela natureza, e a impossibilidade de reduzir a mente ao cérebro. 

Também na presença do mal e da injustiça no mundo, muitos veem hoje em dia uma prova da não-existência de Deus, pois se existisse, não o permitiria. Na verdade, esta inquietude e esta interrogação são também “vias” para Deus. A pessoa, com efeito, percebe o mal e a injustiça como privações, como situações dolorosas que não eram para existir, que reclamam um bem e uma justiça à que aspira. Pois se a estrutura mais íntima do nosso ser não aspirasse ao bem, não veríamos no mal um dano e uma privação. 

No ser humano existe um desejo natural de verdade, de bem e de felicidade, que são manifestações de nossa aspiração natural de ver a Deus. Se tal pretensão ficasse frustrada, a criatura humana seria convertida em um ser existencialmente contraditório, já que estas aspirações constituem o núcleo mais profundo da vida espiritual e da dignidade da pessoa. Sua presença no mais profundo do coração mostra a existência de um Criador que nos chama a Si através da esperança n’Ele. Se as vias “cosmológicas” não garantem a possibilidade de chegar a Deus enquanto ser pessoal, as vias “antropológicas”, que partem do homem e de seus desejos naturais deixam entrever que o Deus do qual reconhecemos nossa dependência deve ser uma pessoa capaz de amar, um ser pessoal, diante de criaturas pessoais. 

A Sagrada Escritura contém ensinamentos explícitos sobre a existência de uma lei moral inscrita por Deus no coração do homem (cf. Eclo 15, 11-20;Sl 19; Rm 2, 12-16). A filosofia de inspiração cristã denominou-a “lei moral natural”, acessível aos homens de todas as épocas e culturas, ainda que seu reconhecimento, como no caso da existência de Deus, pode ficar na obscuridade pelo pecado. O Magistério da Igreja tem enfatizado repetidamente a existência da consciência humana e da liberdade como vias para Deus [10]. 

4. A negação de Deus: as causas do ateísmo

As diversas argumentações filosóficas empregadas para “provar” a existência de Deus não causam necessariamente a fé em Deus, mas apenas asseguram que a fé é razoável. E isto por vários motivos: a) levam o homem a reconhecer alguns atributos filosóficos da imagem de Deus (bondade, inteligência etc.), entre os quais sua própria existência, mas não indicam nada sobre Quem seja o ser pessoal para o qual se dirige o ato de fé; b) a fé é a resposta livre do homem a Deus que Se revela, não uma dedução filosófica necessária; c) o próprio Deus é causa da fé: Ele é quem Se revela gratuitamente e move com sua graça o coração do homem para que dê sua adesão a Ele; d) deve-se considerar a obscuridade e a incerteza com a qual o pecado fere a razão do homem, obstaculizando tanto o reconhecimento da existência de Deus como a resposta de fé a sua Palavra (cf. Catecismo, 37). Por estes motivos, particularmente o último, sempre é possível a negação de Deus por parte do homem[11]. 

O ateísmo possui uma manifestação teórica (tentativa de negar positivamente a Deus, por via racional) e uma prática (negar a Deus com o próprio comportamento, vivendo como se não existisse). Uma profissão de ateísmo positivo como consequência de uma análise racional de tipo científico, empírico, é contraditória, porque – como já se disse – Deus não é objeto de saber científico-experimental. Uma negação positiva de Deus a partir da racionalidade filosófica é possível por parte de visões específicas apriorísticas da realidade, de caráter quase sempre ideológico, principalmente o materialismo. A incongruência destas visões pode pôr-se de manifesto com a ajuda da metafísica e da gnosiologia realista. 

Uma causa difundida de ateísmo positivo consiste em considerar que a afirmação de Deus supõe uma penalização para o homem: se Deus existisse, então não seríamos livres, nem gozaríamos de plena autonomia na existência terrena. Este enfoque ignora que a dependência da criatura em relação a Deus fundamenta a liberdade e a autonomia da criatura[12]. O contrário, sim, é que é verdadeiro: como ensina a história dos povos e nossa recente época cultural, quando se nega a Deus, termina-se negando também o homem e sua dignidade transcendente. 

Outros chegam à negação de Deus considerando que a religião, particularmente o cristianismo, representa um obstáculo ao progresso humano, pois é fruto da ignorância e da superstição. A esta objeção pode-se responder a partir de bases históricas: é possível mostrar a influência positiva da Revelação cristã sobre a concepção da pessoa humana e seus direitos, ou até sobre a origem e o progresso das ciências. Por parte da Igreja Católica, a ignorância foi sempre considerada, e com razão, um obstáculo no caminho da verdadeira fé. Em geral, aqueles que negam a Deus para afirmar o aperfeiçoamento e o avanço do homem, fazem-no para defender uma visão imanente do progresso histórico, que tem como fim a utopia política ou um bem-estar puramente material, que são incapazes de satisfazer plenamente as expectativas do coração humano. 

Entre as causas do ateísmo, especialmente do ateísmo prático, deve incluir-se também o mau exemplo dos crentes, “na medida em que, com o descuido da educação religiosa, ou com a exposição inadequada da doutrina, ou inclusive com os defeitos de sua vida religiosa, moral e social, velaram, em vez de revelar o genuíno rosto de Deus e da religião”[13]. De modo positivo, a partir do Concílio Vaticano II, a Igreja sempre apontou o testemunho dos cristãos como o principal fator para realizar uma necessária “nova evangelização”[14]. 

5. O agnosticismo e a indiferença religiosa

O agnosticismo, difundido especialmente nos ambientes intelectuais, sustenta que a razão humana não pode concluir nada sobre Deus e sua existência. Com frequência seus defensores se propõem um empenho de vida pessoal e social, mas sem qualquer referência a um fim último, procurando assim viver um humanismo sem Deus. A posição agnóstica termina com frequência identificando-se com o ateísmo prático. Quanto ao mais, quem pretendesse orientar os fins parciais do próprio viver cotidiano sem nenhum tipo de compromisso com a tendência natural ao fim último dos próprios atos, na realidade deveria dizer que no fundo já escolheu um fim, de caráter imanente para a própria vida. A posição agnóstica merece, de qualquer modo, respeito, se bem que seus defensores devem ser estimulados a demonstrar a retidão de sua não-negação de Deus, mantendo uma abertura à possibilidade de reconhecer sua existência e revelação na história. 

A indiferença religiosa – também chamada “irreligiosidade” – representa hoje a principal manifestação de incredulidade, e como tal, vem recebendo crescente atenção por parte do Magistério da Igreja [15].O tema de Deus não se leva a sério, ou não se leva em consideração, em absoluto, porque é sufocado na prática por uma vida orientada para os bens materiais. A indiferença religiosa coexiste com certa simpatia pelo sagrado, e talvez pelo pseudo-religioso, apreciados de um modo moralmente descuidado, como se fossem bens de consumo. Para manter por um bom tempo uma posição de indiferença religiosa, o ser humano necessita de contínuas distrações e desse modo não precisa deter-se em problemas existenciais mais importantes, separando-se tanto da vida cotidiana como da própria consciência: o sentido da vida e da morte, o valor moral das próprias ações etc. Mas, como na vida de uma pessoa há sempre acontecimentos que “fazem a diferença” (o apaixonar-se, paternidade e maternidade, mortes prematuras, dores e alegrias etc.), a posição de “indiferentismo” religioso não pode ser mantida ao longo de toda a vida, porque sobre Deus não se pode evitar o interrogar-se, ao menos alguma vez na vida. A partir de tais acontecimentos existencialmente significativos, é preciso ajudar o indiferente a abrir-se com seriedade para a busca e afirmação de Deus. 

6. O pluralismo religioso: há um único e verdadeiro Deus, que Se revelou em Jesus Cristo
A religiosidade humana – que quando é autêntica, é caminho em direção ao reconhecimento do único Deus – tem-se expressado e se manifesta na história e na cultura dos povos, em formas diversas e às vezes também no culto a diferentes imagens ou ideias da divindade. As religiões da terra que manifestam a busca sincera de Deus e respeitam a dignidade transcendente do homem devem ser respeitadas: a Igreja Católica considera que nelas está presente uma faísca, quase uma participação da Verdade divina[16]. Ao se aproximar das diversas religiões da terra, a razão humana sugere um oportuno discernimento: reconhecer a presença de superstição e de ignorância, de formas de irracionalidade, de práticas que não estão de acordo com a dignidade e a liberdade da pessoa humana. 

O diálogo inter-religioso não se opõe à missão e à evangelização. Mais ainda, respeitando a liberdade de cada um, a finalidade do diálogo há de ser sempre o anúncio de Cristo. As sementes de verdade que as religiões não cristãs podem conter, são, de fato, sementes da Única Verdade que é Cristo. Portanto, essas religiões não cristãs têm o direito de receber a revelação e serem conduzidas à maturidade mediante o anúncio de Cristo, caminho, verdade e vida. Entretanto, Deus não nega a salvação àqueles que, ignorando sem culpa o anúncio do Evangelho, vivem segundo a lei moral natural, reconhecendo seu fundamento no único e verdadeiro Deus[17]. 

No diálogo inter-religioso, o cristianismo pode proceder mostrando que as religiões da terra, enquanto expressões autênticas do vínculo com o verdadeiro e único Deus, alcançam no cristianismo seu cumprimento. Somente em Cristo, Deus revela o homem ao próprio homem, oferece a solução de seus enigmas e lhe descobre o sentido profundo de suas aspirações. Ele é o único mediador entre Deus e os homens[18]. 

O cristão pode manter um diálogo inter-religioso com otimismo e esperança, uma vez que sabe que todo ser humano foi criado à imagem do único e verdadeiro Deus e que cada um, se sabe refletir no silêncio de seu coração, pode escutar o testemunho da própria consciência, que também conduz ao único Deus, revelado em Jesus Cristo. “Para isto nasci e para isto vim ao mundo – afirma Jesus diante de Pilatos -, para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37). Neste sentido, o cristão pode falar de Deus sem risco de intolerância, porque o Deus que ele exorta a reconhecer na natureza e na consciência de cada um, aquele Deus que criou o céu e a terra, é o mesmo da história da salvação, que foi revelada ao povo de Israel e Se fez homem em Cristo. Este foi o itinerário seguido pelos primeiros cristãos: repeliram a ideia de se adorar a Cristo como um a mais entre os deuses do Pantheon romano, porque estavam convencidos da existência de um único e verdadeiro Deus; e se empenharam ao mesmo tempo em mostrar que o Deus vislumbrado pelos filósofos como causa, razão e fundamento do mundo, era e é o mesmo Deus de Jesus Cristo [19]. 

Giuseppe Tanzella-Nitti


Bibliografia básica
Catecismo da Igreja Católica, 27-49.

Concilio Vaticano II, Const. Gaudium et spes, 4-22.

João Paulo II, Enc. Fides et ratio, 14-09-1998, 16-35.

Bento XVI, Enc. Spe salvi, 30-11-2007, 4-12.

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[1] Cf. João Paulo II, Enc. Fides et ratio, 14-09-1998, 1.

[2] “Para além de todas as diferenças que caracterizam os indivíduos e os povos, há uma dimensão fundamental comum, já que as várias culturas não são, na realidade, mais que modos diversos de abordar a questão do significado da existência pessoal. Precisamente aqui podemos identificar uma fonte do respeito que é devido a cada cultura e a cada nação: toda cultura é um esforço de reflexão sobre o mistério do mundo, e em particular do homem: é um modo de expressar a dimensão transcendente da vida humana. O coração de cada cultura é constituído pela proximidade do maior dos mistérios: o mistério de Deus”, João Paulo II, Discurso na O.N.U., New York, 5-10-1995, «Magistério», XVIII,2 (1995) 730-744, n. 9.

[3] Concílio Vaticano II, Decl. Dignitatis humanae, 2.

[4] Cf. Concílio Vaticano II, Const. Gaudium et spes, 10.

[5] Cf. João Paulo II, Carta Ap. Tertio millennio adveniente, 10-11-1994, 6; Enc. Fides et ratio, 2.

[6] Cf. S. São Tomás de Aquino, Summa theologiae, I, q. 2, a. 3; Contra gentiles, I, c. 13. Para uma exposição detalhada remete-se o leitor a estas duas referências de São Tomás e a algum manual de Metafísica ou Teologia Natural.

[7] Cf. Concílio Vaticano I, Const. Dei Filius, 24-IV-1870, DH 3004; Motu Proprio Sacrorum Antistitum, 1-09-1910, DH 3538; Congregação para a Doutrina da Fe, Inst. Donum veritatis, 24-5-1990, 10; Enc. Fides et ratio, 67.

[8] “Com agradecimento, porque percebemos a felicidade a que estamos chamados, aprendemos que todas as criaturas foram tiradas do nada por Deus e para Deus: as racionais, os homens, ainda que com tanta frequência percamos a razão; e as irracionais, as que perambulam pela superfície da terra, ou habitam nas entranhas do mundo, ou cruzam o azul do céu, algumas até olhar fixamente para o sol. Porém, em meio a esta maravilhosa variedade, somente nós, os homens – não me refiro aos anjos – nos unimos ao Criador pelo exercício de nossa liberdade: podemos render ou negar ao Senhor a glória que lhe corresponde como Autor de tudo o que existe”, São Josemaria, Amigos de Deus, 24. 

[9] Cf. Concílio Vaticano IIConst. Gaudium et spes, 18.

[10] Cf. Ibidem, 17-18. Em particular, a doutrina sobre a consciência moral e a responsabilidade ligada à liberdade humana no quadro da explicação da pessoa humana como imagem de Deus, foi extensamente elaborada por João Paulo II, Enc. Veritatis splendor, 6-8-1993, 54-64.

[11] Cf. Concílio Vaticano IIConst. Gaudium et spes, 19-21.

[12] Cf. Ibidem, 36.

[13] Ibidem, 19.

[14] Cf. Ibidem, 21; Paulo VI, Enc. Evangelii nuntiandi, 8-12-1975, 21; João Paulo II, Enc. Veritatis splendor, 93; João Paulo II, Carta Ap. Novo millennio ineunte, 6-01-2001, cap. III e IV.

[15] Cf. João Paulo II, Ex. Ap. Christifideles laici, 30-12-1988, 34; Enc. Fides et ratio, 5.

[16] Cf. Concílio Vaticano II, Decl. Nostra Aetate, 2.

[17] Cf. Concílio Vaticano II, Const. Lumen gentium, 16.

[18] Cf. João Paulo II, Enc. Redemptoris missio, 7-12-1990, 5; Congregação para a Doutrina da Fé, Decl. Dominus Iesus, 6-08-2000, 5;13-15.

[19] Cf. João Paulo II, Enc. Fides et ratio, 34; Bento XVI, Enc. Spe salvi, 30-11-2007, 5.

terça-feira, 12 de junho de 2012

A RELAÇÃO ENTRE O MAGISTÉRIO DA IGREJA E EXEGESE

Cardeal Joseph Ratzinger (10. maio. 2003)

  Não escolhi o tema da minha reflexão apenas porque ele faz parte das questões que, de direito, se inserem numa retrospectiva sobre os cem anos da Pontifícia Comissão Bíblica (10. 05. 2003), mas porque se insere, por assim dizer, também nos problemas da minha biografia:  há mais de meio século o meu percurso teológico pessoal move-se no âmbito determinado deste tema.
No decreto da Congregação Consistorial de 29 de Junho de 1912 De quibusdam commentariis non asmittendis encontram-se dois nomes, que cruzaram a minha vida. Nele, com efeito, é condenada a Introdução ao Antigo Testamento do Professor de Frisinga, Karl Holzhey; ele já tinha falecido quando, em Janeiro de 1946, comecei os meus estudos de teologia nas proximidades da Catedral de Frisinga, mas a seu respeito ainda circulavam anedotas eloquentes. Devia ser um homem bastante seguro de si e fechado. Conheço melhor o segundo nome citado, o de Fritz Tillmann, que fez um comentário do Novo Testamento definido inaceitável. Nessa obra, o autor do comentário aos sinópticos era Friedrich Wilhelm Maier, um amigo de Tillmann, então professor livre em Estrasburgo. O decreto da Congregação Consistorial estabelecia que estes comentários expungenda omnio esse ab institutione clericorum. O Comentário, do qual encontrei um exemplar esquecido quando era estudante no Seminário Menor de Traunstein, devia ser banido e retirado do comércio porque Maier afirmava nele, em relação à questão sinóptica, a chamada teoria das duas fontes, que hoje é aceite quase por todos. Isto, naquela época, determinou também o fim da carreira científica de Tillmann e de Maier. Contudo, aos dois era permitido mudar de disciplina teológica. Tillmann aproveitou esta possibilidade tornando-se depois um grande teólogo moral alemão. Juntamente com Th. Steinbüchel e Th. Müncker fizeram um manual de teologia moral de vanguarda, que tratava de maneira nova esta importante disciplina e a apresentava segundo a ideia básica da imitação de Cristo. Maier não quis aproveitar da possibilidade de mudar de disciplina; de facto, dedicou-se alma e corpo ao trabalho sobre o Novo Testamento. Desta forma, tornou-se capelão militar e com este cargo participou na primeira guerra mundial; em seguida, trabalhou como capelão nos cárceres até 1924, quando, com o consentimento do arcebispo de Breslau (hoje Wroclaw), Cardeal Bertram, num clima já mais tranquilo, foi chamado para a Cátedra de Novo Testamento na Faculdade teológica dessa cidade. Em 1945, quando aquela Faculdade foi suprimida, juntamente com outros colegas, foi para Munique, onde o tive como professor.
A ferida de 1912 nunca desapareceu totalmente, apesar de ele poder agora ensinar a sua matéria praticamente sem problemas e de ser apoiado pelo entusiasmo dos seus estudantes, aos quais conseguia transmitir a sua paixão pelo Novo Testamento e uma correcta interpretação. De vez em quando, nas suas lições vinham ao de cima recordações do passado. Ainda me recordo sobretudo de uma expressão que ele pronunciou em 1948 ou em 1949. Disse que já podia seguir livremente a sua consciência de historiador, mas que ainda não se tinha chegado à completa liberdade da exegese que ele sonhava. Disse também que provavelmente não teria chegado a ver isto, mas que pelo menos, como Moisés no Monte Nebo, desejava poder lançar o olhar sobre a Terra Prometida de uma exegese livre de qualquer forma de controlo e condicionamento do Magistério. Sentimos que no coração deste homem culto, que levava uma vida sacerdotal exemplar, fundada na fé na Igreja, pesava não só aquele decreto da Congregação Consistorial, mas que também os vários decretos da Comissão Bíblica sobre a autenticidade moisaica do Pentateuco (1906), sobre o carácter histórico dos primeiros três capítulos do Génesis (1909), sobre autores e sobre a época de composição dos Salmos (1910), sobre Marcos e Lucas (1912), sobre a questão sinóptica (1912), e assim por diante impediam o seu trabalho de exegeta com origens que ele considerava indevidas. Ainda persistia a impressão de que os exegetas católicos, devido a estas decisões magisteriais, fossem impedidos de desempenhar um trabalho científico sem restrições, e que desta forma a exegese católica, em relação à protestante, nunca pudesse estar completamente ao nível dos tempos e a sua seriedade científica fosse, de certa forma e com razão, posta em dúvida pelos protestantes. Naturalmente influía também a convicção de que um trabalho rigorosamente histórico fosse capaz de certificar de maneira credível os dados de facto objectivos da história, aliás, que este fosse o único caminho possível para compreender no seu sentido próprio os livros bíblicos, os quais, precisamente, são livros históricos. Dava por certa a credibilidade e a inequivocabilidade do método histórico; não lhe vinha minimamente nem sequer a ideia de que também neste método entrassem em jogo pressupostos filosóficos e que pudesse ser necessária uma reflexão sobre as implicações filosóficas do método histórico. Para ele, como para muitos colegas seus, a filosofia parecia um elemento que incomodava, algo que só podia poluir a objectividade pura do trabalho histórico. Não se lhes perspectivava a questão hermenêutica, ou seja, não se interrogavam em que medida o horizonte de quem pergunta determine o acesso ao texto, tornando necessário esclarecer, antes de mais, qual seja o método justo de perguntar e de que forma é possível purificar o próprio perguntar. Precisamente por isto, o Monte Nebo teria certamente reservado algumas surpresas totalmente fora do seu horizonte.
Agora gostaria de tentar subir, por assim dizer, com ele ao Monte Nebo para observar, a partir da perspectiva de então, a terra que atravessámos nos últimos cinquenta anos. A respeito disto, poderia ser útil recordar a experiência de Moisés. O capítulo 34 do Deuteronómio descreve como no Monte Nebo é concedido a Moisés lançar um olhar sobre a Terra Prometida, que ele vê em toda a sua extensão. O olhar que lhe é concedido é, por assim dizer, um olhar puramente geográfico e não histórico. Contudo, poder-se-ia dizer que o capítulo 28 do mesmo livro apresenta um olhar não sobre a geografia mas sobre a história futura, na e com a terra, e que aquele capítulo oferece uma perspectiva muito diferente, muito menos confortadora:  "O Senhor dispersar-te-á entre todos os povos de uma extremidade à outra da terra... E, até no meio dessas nações, não encontrarás repouso nem ponto de apoio para a planta dos teus pés" (Dt 28, 64 s.). Poder-se-ia resumir o que Moisés via nesta visão interior da seguinte forma:  a liberdade pode destruir-se a si mesma; quando perde o seu critério intrínseco suprime-se a si mesma.
O que poderia entrever um olhar histórico lançado do Nebo sobre a terra da exegese dos últimos cinquenta anos? Antes de tudo, muitas coisas que teriam sido de conforto para Maier, a realização do seu sonho, por assim dizer. Já a encíclica Divino afflante Spirito de 1943 introduziu uma nova forma de compreender a relação entre o Magistério e as exigências científicas da leitura histórica da Bíblia. Em seguida, os anos sessenta representaram a entrada na Terra Prometida da liberdade da exegese, mantendo esta imagem metafórica. Primeiro, encontramos a instrução da Comissão Bíblica, de 21 de Abril de 1946, sobre a verdade histórica dos Evangelhos, mas depois, sobretudo, a Constituição Dei Verbum de 1965 sobre a Revelação Divina, com a qual se abriu na realidade um novo capítulo na relação entre Magistério e exegese científica. Não é preciso realçar aqui a importância deste texto fundamental. Ele, antes de mais, define o conceito de Revelação, que não se identifica de modo algum com o seu testemunho escrito que é a Bíblia, e abre, desta forma, o horizonte, histórico e ao mesmo tempo teológico, no qual se move a interpretação da Bíblia, uma interpretação que vê nas Escrituras não só livros humanos, mas o testemunho de um falar divino. Assim, torna-se possível determinar o conceito de Tradição, que também supera a Escritura, apesar de ter nela o seu centro, a partir do momento em que a Escritura é, em primeiro lugar e por sua natureza, "tradição". Isto leva ao terceiro capítulo da Constituição, dedicado à interpretação da Escritura; nele emerge, de maneira convincente, a necessidade absoluta do método histórico como parte indispensável do esforço exegético, mas surge depois também a dimensão propriamente teológica da interpretação, que como já foi dito, é essencial, se aquele livro é mais do que palavra humana.
Prosseguimos a nossa investigação do Monte Nebo:  Maier, do seu lugar de observação, teria podido alegrar-se especialmente pelo que aconteceu em Junho de 1971. Com o motu proprio Sedula cura, Paulo VI restruturou completamente a Comissão Bíblica de tal forma que deixou de ser um órgão do Magistério, para ser um lugar de encontro entre o Magistério e exegetas, um lugar de diálogo no qual se pudessem encontrar juntos, por assim dizer, os critérios intrínsecos da liberdade que a impedem de se autodestruir, elevando-a assim ao nível de uma verdadeira liberdade. Maier teria podido alegrar-se também pelo facto de que um dos seus melhores alunos, Rudolff Schnackenburg, tinha começado a fazer parte não precisamente da Comissão Bíblica, mas da não menos importante Comissão Teológica Internacional, de forma que agora ele mesmo, por assim dizer, estava quase naquela Comissão que lhe tinha causado tantas preocupações.
Recordamos outra data importante que, do nosso Nebo imaginário, teria podido surgir no horizonte:  o documento da Comissão Bíblica A interpretação da Bíblia na Igreja, de 1993, no qual já não é o Magistério que impõe do alto normas aos exegetas, mas são eles mesmos que procuram definir os critérios que devem determinar o caminho para uma interpretação adequada deste livro especial, o qual, visto só do exterior, constitui, no fundo, nada mais do que uma recolha literária de escritos, cuja composição se alarga por todo um milénio. Só o sujeito do qual esta literatura nasceu o povo de Deus peregrino faz desta recolha literária, com toda a sua variedade e os seus aparentes contrastes, um único livro. Mas este povo sabe que não fala nem age por si, mas é devedor Àquele que faz dele um povo:  o próprio Deus vivo que lhe fala através dos autores de cada livro.
Por conseguinte, o sonho tornou-se realidade? Os segundos cinquenta anos da Comissão Bíblica cancelaram e puseram de parte como ilegítimo o que os primeiros cinquenta tinham produzido? À primeira pergunta responderia que o sonho foi traduzido em realidade e que simultaneamente foi também corrigido. A mera objectividade do método histórico não existe. É simplesmente impossível excluir totalmente a filosofia, ou seja, a pré-compreensão hermenêutica. Isto já se evidencia, quando Maier ainda era vivo, por exemplo, no "Comentário a João" de Bultmann, onde a filosofia heidegeriana não servia apenas para fazer presente aquilo que historicamente estava longe e agia, ou seja, como meio de transporte que transfere o passado para o nosso hoje, mas também como desembarcadouro que leva o leitor para dentro do texto. Mas esta tentativa falhou, e tornou-se evidente que unicamente o método histórico como de resto também no caso da literatura profana não existe. É sem dúvida compreensível que os teólogos católicos, na época em que as decisões da Comissão Bíblica de então lhes impediam uma mera aplicação do método histórico-crítico, olhassem com inveja para os teólogos evangélicos, os quais, entretanto, com a seriedade da sua investigação, estavam em condições de apresentar resultados e aquisições novas sobre como esta literatura, que nós chamamos Bíblia, tenha nascido e crescido ao longo do caminho do povo de Deus. Mas com isto não era considerado suficientemente o facto de que na teologia protestante se tinha o problema oposto. É o que se vê de maneira clara, por exemplo, na conferência realizada em 1936 pelo grande aluno de Bultmann, que mais tarde se converteu ao catolicismo, Heinrich Schlier, sobre a responsabilidade eclesial do estudante de teologia. Naqueles tempos, a cristandade evangélica na Alemanha estava comprometida numa batalha pela sobrevivência:  o confronto entre os chamados Cristãos alemães (deutsche Christen) que, submetendo o cristianismo à ideologia do nacional-socialismo, o falsificaram nas suas raízes e a Igreja confessante (Bekennende kirche). Neste contexto Schlier dirigiu aos estudantes de Teologia estas palavras:  "...Reflecti um momento sobre o que é melhor:  que a Igreja, de maneira legítima e depois de uma reflexão atenta, prive do ensino um teólogo por uma doutrina heterodoxa, ou que o indivíduo, de modo gratuito silencie um ou outro professor de heterodoxia e alerte contra ele? Não se deve pensar que o julgar acabe quando se deixa que cada qual julgue ad libitum. Aqui a visão liberal é coerente quando afirma que não pode existir decisão alguma sobre a verdade de um ensinamento, e que por isso cada ensinamento tem algo de verdadeiro e, portanto, na Igreja devem ser admitidos todos os ensinamentos. Mas nós não partilhamos esta visão. De facto, ela nega que Deus tenha tomado verdadeiramente uma decisão entre nós...". Quem se recorda que então grande parte das Faculdades protestantes de teologia estava quase exclusivamente nas mãos dos Cristãos alemães e que Schlier, devido a afirmações como a que acabamos de citar, teve que deixar o ensino académico, pode dar-se conta de outro aspecto deste problema.
Chegamos assim à segunda e conclusiva questão:  como devemos avaliar, hoje, os primeiros cinquenta anos da Comissão Bíblica? Tudo foi, apenas, um trágico condicionamento da liberdade da teologia, um conjunto de erros dos quais nos devemos libertar nos segundos cinquenta anos da Comissão, ou não devemos, ao contrário, considerar este difícil processo de maneira mais pormenorizada? Que as coisas não sejam tão simples, como pareceu nos primeiros entusiasmos do começo do Concílio, é evidenciado por quanto já dissemos. Permanece uma verdade que o Magistério, com as decisões citadas, alargou demasiado o âmbito das certezas que a fé pode garantir; por isso permanece uma realidade, e é que assim foi diminuída a credibilidade do Magistério e limitado de modo excessivo o espaço necessário para as investigações e para as interrogações exegéticas. Mas é de igual modo verdadeiro, no que se refere à interpretação da Escritura, que a fé tem a sua palavra a dizer e que, por conseguinte, também os Pastores são chamados a corrigir, quando se perde de vista a natureza particular deste livro e uma objectividade, que é pura só na aparência, faz desaparecer aquilo que a Sagrada Escritura tem de seu e de específico. Portanto, foi indispensável uma profunda investigação, para que a Bíblia tivesse a sua justa hermenêutica e a exegese histórico-crítica o seu justo lugar.
Parece-me que se podem distinguir dois níveis do problema, que na época estava em questão, e hoje também. Num primeiro nível, devemos perguntar-nos até onde chega a dimensão meramente histórica da Bíblia e onde começa a sua especificidade, que a mera racionalidade histórica não alcança. Também se poderia formular como um problema interno do próprio método histórico:  que pode fazer ele na realidade e quais são os seus limites intrínsecos? Quais são as outras modalidades de compreensão necessárias para um texto deste género? A investigação pormenorizada que se deve empreender pode ser comparada, num certo sentido, ao trabalho que o caso Galileu exigiu. Até àquele momento parecia que a visão geocêntrica do mundo estava ligada de maneira indecifrável ao que era revelado pela Bíblia; parecia que quem estava a favor da visão heliocêntrica do mundo se separava do centro da Revelação. A relação entre a aparência externa e a verdadeira e própria mensagem do todo devia ser revista profundamente, e só lentamente se poderiam elaborar os critérios que teriam permitido pôr numa justa relação entre si a racionalidade científica e a mensagem específica da Bíblia. Sem dúvida, a tensão não pode ser considerada totalmente resolvida, porque a fé testemunhada pela Bíblia inclui também o mundo material, afirma algo também sobre ele, sobre a sua origem e sobre a origem do homem em particular. Reduzir toda a realidade do modo como nos vem ao encontro a meras causas materiais, confinar o Espírito criador na esfera da mera subjectividade, é inconciliável com a mensagem fundamental da Bíblia.
Mas isto exige um debate sobre a própria natureza da verdadeira racionalidade; dado que, se se apresenta uma explicação meramente materialista da realidade como única e possível expressão da racionalidade, então a própria racionalidade é compreendida de maneira falsa. Deve-se afirmar algo análogo no que se refere à história. Num primeiro momento parecia indispensável, para a credibilidade da Escritura e, portanto, para a fé fundada sobre ela, que o Pentateuco devesse ser atribuído indiscutivelmente a Moisés ou que os autores de cada um dos Evangelhos tivessem que ser verdadeiramente os que foram nomeados pela Tradição. Também aqui é necessário, por assim dizer, definir de novo lentamente os âmbitos; a relação fundamental entre fé e história devia ser novamente pensada. Também nisto haverá sempre espaço para o debate. A opinião de que a fé, enquanto tal, não conhece absolutamente nada dos factos históricos e deve deixar tudo isto aos historiadores, é gnosticismo; esta opinião desencarna a fé e redu-la a pura ideia. Para a fé que se baseia na Bíblia é, ao contrário, exigência constitutiva precisamente o realismo do acontecimento.
Um Deus que não pode intervir na história nem mostrar-se nela não é o Deus da Bíblia. Por isso, a realidade do nascimento de Jesus da Virgem Maria, a efectiva instituição da Eucaristia por parte de Jesus na Última Ceia, a sua ressurreição corporal dos mortos este é o significado do sepulcro vazio são elementos da fé enquanto tal, que ela pode e deve defender contra uma só presumível melhor consciência histórica. Que Jesus em tudo o que é essencial tenha sido efectivamente aquele que nos mostram os Evangelhos, não é de modo algum um pressuposto histórico, mas um dado de fé.
Objecções que nos queiram convencer do contrário não são expressão de um efectivo conhecimento científico, mas são uma sobreavaliação arbitrária do método. Que, entre outras coisas, muitas questões nos seus particulares devem permanecer abertas e ser confiadas a uma interpretação consciente das suas responsabilidades é o que, entretanto, aprendemos.
Com isto, chegamos ao segundo nível do problema:  não se trata simplesmente de fazer um elenco de elementos históricos indispensáveis à fé. Trata-se de ver o que pode a razão e por que é que a fé pode ser razoável e a razão aberta à fé. Entretanto, não foram corrigidas apenas as decisões da Comissão Bíblica que tinham entrado demasiado no âmbito das questões meramente históricas; também aprendemos algo de novo sobre as modalidades e os limites do conhecimento histórico.
Werner Heisenberg, no âmbito das ciências naturais, verificou com a sua "Unsicherheitsrelation" que o nosso conhecer nunca reflecte apenas o que é objectivo, mas é sempre determinado também pela participação do sujeito, da perspectiva da qual apresenta as perguntas e da sua capacidade de precisão. Tudo isto, naturalmente, é válido em maior medida e sem comparação, quando entra em jogo o próprio homem ou onde o mistério de Deus é perceptível. Portanto, fé e ciência, Magistério e exegese já não estão em oposição como mundos fechados em si mesmos. A fé é, ela mesma, um mundo de conhecimentos. Querer pô-la de lado não produz a pura objectividade, mas constitui a escolha de um ponto de vista que exclui uma determinada perspectiva e já não quer ter em conta considerações casuais da perspectiva escolhida. Mas se nos apercebemos de que as Sagradas Escrituras provêm de Deus através de um sujeito que ainda vive o povo de Deus peregrinante então é também evidente de modo racional que este sujeito tem algo para dizer sobre a compreensão do livro.
A Terra Prometida da liberdade é mais fascinante e multiforme do que podia imaginar o exegeta de 1948. As condições intrínsecas da liberdade tornaram-se evidentes. Ela pressupõe a escuta atenta, conhecimento dos limites dos vários caminhos, plena seriedade da ratio, mas também espontaneidade em limitar-se e em superar-se no pensar e no viver juntamente com o sujeito que nos garante os diversos escritos da Antiga e da Nova Aliança como uma única obra, a Sagrada Escritura. Estamos profundamente gratos pelas aberturas que, como fruto de um longo trabalho de investigação, o Concílio Vaticano II nos deu. Mas também não condenamos o passado com superficialidade, mas vemo-lo como parte necessária de um processo de conhecimento que, considerada a grandeza da Palavra revelada e os limites das nossas capacidades, nos apresentará sempre novos desafios. Precisamente nisto está o melhor. E assim, a cem anos da constituição da Comissão Bíblica, apesar de todos os problemas que surgiram neste espaço de tempo, ainda podemos olhar, agradecidos e cheios de esperança, para o caminho que se abre diante de nós.

sábado, 26 de maio de 2012

Sermão Sobre Pentecostes - São Leão Magno, papa




Todos os corações sabem, caríssimos, que a solenidade de hoje deve ser celebrada como uma das festas mais importantes. Ninguém ignora ou contesta a reverência com que se deve festejar este dia, consagrado pelo Espírito Santo com o milagre excelente de seu dom. Sendo, na verdade, o décimo dia depois daquele em que o Senhor subiu ao céu, para se assentar à direita de Deus, refulge como o dia qüinquagésimo após a sua Ressurreição, e traz em si grandes mistérios, referentes a antigos e novos sacramentos, na mais clara manifestação de que a Graça foi prenunciada pela Lei e a Lei cumprida pela Graça. Sim, do mesmo modo como outrora, no monte Sinai, a Lei fora dada ao povo hebreu, libertado dos egípcios, no dia qüinquagésimo após a imolação do cordeiro, assim também, após a Paixão de Cristo, imolação do verdadeiro Cordeiro de Deus, é no qüinquagésimo dia desde sua Ressurreição que se infunde o Espírito Santo nos apóstolos e na multidão dos fiéis. O cristão diligente facilmente vê como os inícios do Antigo Testamento serviram aos primórdios do Evangelho, e como a segunda Aliança foi criada pelo mesmo Espírito que instituiu a primeira.

Com efeito, diz a narrativa dos apóstolos:

"Como se completassem os dias de Pentecostes e estivessem todos os discípulos juntos no mesmo lugar, repentinamente se fez ouvir do céu um ruído como o de vento que soprava impetuosamente, e encheu toda a casa onde estavam. Apareceram-lhes então como línguas de fogo, que se puseram sobre cada um deles; e todos ficaram cheios do Espírito Santo, começando a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia falarem" 1.

É veloz a palavra da Sabedoria, e onde Deus é o Mestre quão rapidamente se aprende a doutrina! Não houve necessidade de interpretação para o entendimento, não houve aprendizado, não houve prazo para estudo, mas, assim que o Espírito da verdade soprou como quis, as línguas particulares dos diversos povos se tornaram comuns na boca da Igreja.

A partir desse dia ressoou a trombeta da pregação evangélica. A partir desse dia as chuvas de graças, os rios das bênçãos irrigaram todos os desertos e a terra inteira, pois a fim de renovar sua face "o Espírito de Deus pairava sobre as águas"2. E, para a expulsão das trevas de antes, coruscavam os relâmpagos da nova Luz no esplendor das línguas flamejantes. Assim se manifestava a luminosa e ígnea palavra do Senhor, dotada da eficácia de iluminar e da força de abrasar, necessárias ao entendimento e à destruição do pecado.

Porém, caríssimos, embora tenha sido admirável a própria aparência desses acontecimentos e não haja dúvida de que a majestade do Espírito Santo tenha estado presente à harmonia exultante das vozes humanas, não se pense que apareceu a sua divina essência naquilo que se mostrou aos olhes corporais. A natureza invisível e comum ao Pai e ao Filho manifestou a qualidade de seu dom e de sua obra por meio do sinal de santificação que bem lhe aprouve, mas conteve em sua divindade a propriedade de sua essência.

Assim como a visão humana não pode perceber o Pai e o Filho também não percebe o Espírito Santo. Na Trindade, com efeito, nada é dissemelhante, nada é desigual, e todas as coisas que se possam pensar a respeito dessa substância não se distinguem pela excelência, pela glória ou pela eternidade. É verdade que, conforme as propriedades das Pessoas, um é o Pai, outro o Filho, outro o Espírito Santo, mas não há divindade diferente, natureza distinta. Assim como o Filho precede do Pai, igualmente o Espírito Santo é Espírito do Pai e do Filho. Não como as criaturas, que são também do Pai e do Filho, mas como alguém que, como ambos, vive, é poderoso e existe eternamente, desde que existem o Pai e o Filho. Por essa razão o Senhor, quando prometeu a vinda do Espírito Santo aos discípulos, antes do dia da Paixão, disse:

"Ainda muitas coisas vos tenho a dizer: quando, porém, vier o Espírito da verdade, ele vos conduzirá para toda a verdade. Pois não falará de si mesmo, mas falará o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que deverão suceder. Tudo o que o Pai tem é meu; per isto disse que receberá do que é meu e vos anunciará"3.

O Pai, portanto não tem algo que não o tenham o Filho ou o Espírito Santo. Tudo o que tem o Pai, tem o Filho e tem o Espírito Santo. Nunca faltou na Trindade essa perfeita comunhão; nela são uma mesma coisa "tudo possuir" e "sempre existir". Não imaginemos sucessão de tempo na Trindade, não imaginemos gradações ou diferenças. Se, de um lado não se pode explicar o que Deus é, de outro não se ouse afirmar o que Deus não é. Seria melhor deixar de discorrer sobre as propriedades da natureza inefável de Deus, do que afirmar o que não lhe convém. O que concebem, pois, os corações piedosos a respeito da glória eterna e imutável do Pai, entendam-no ao mesmo tempo do Filho e do Espírito Santo, de um modo inseparável e sem diferença. Nossa confissão é ser a Trindade um só Deus, já que nas três Pessoas não existe diversidade de substancia, poder, vontade ou operação.

Assim, se reprovamos os arianos, que pretendem existir diferença entre o Pai e o Filho, reprovamos igualmente os macedonianos, os quais, embora atribuindo igualdade entre o Pai e o Filho, pensam que o Espírito Santo seja de natureza inferior. Eles não vêem estarem incidindo naquela blasfêmia indigna de ser perdoada tanto no século presente como no futuro, consoante a palavra do Senhor:

"A todo o que disser uma palavra contra o Filho do homem será perdoado, mas ao que disser contra o Espírito Santo não será perdoado nem neste século nem no vindouro"4.

Quem permanece, portanto, nessa impiedade fica sem perdão, pois expulsou de si aquele por meio do qual seria capaz de confessar a verdadeira fé. Jamais se beneficiará do perdão quem não tiver advogado para protegê-lo.

Ora, é do Espírito Santo que procede em nós a invocação do Pai, dele são as lágrimas dos penitentes, dele os gemidos dos que suplicam, "... e ninguém pode dizer Senhor Jesus senão no Espírito Santo"5.

O Apóstolo prega de maneira evidente a onipotência do Espírito, igual à do Pai e do Filho, bem como sua divindade, ao dizer:

"há diversidade de graças, mas um mesmo é o Espírito; e há diversidade de ministérios, mas um mesmo é o Senhor; e há diversidade de operações, mas um mesmo é o Deus que opera tudo em todos"6.

Por estes e outros documentos, através dos quais, de inumeráveis modos brilha a autoridade das palavras divinas, sejamos incitados, caríssimos, unanimemente, à veneração de Pentecostes, exultando em honra do Santo Espírito, por quem toda a Igreja é santificada e toda alma racional é penetrada. Ele é o inspirador da fé, o Mestre da ciência, a fonte do amor, o selo da castidade, o artífice de toda virtude.

Regozijem-se as mentes dos fiéis com o fato de, em todo o mundo, ser louvado pelas diferentes línguas o Deus uno, Pai, e Filho e Espírito Santo; com o fato de prosseguir em seu trabalho e dom aquela santificação que apareceu na chama do fogo. O mesmo Espírito da verdade faz refulgir com sua luz a morada de sua glória, nada querendo de tenebroso ou morno em seu templo.

Foi também por auxílio e instrução desse Espírito que recebemos a purificação do jejum e da esmola. Com efeito, segue-se ao venerável dia de hoje um costume de salutar observância, que os santos julgam de grande utilidade e nós vos exortamos, com pastoral solicitude, a que o celebreis com o maior zelo possível. Assim, se a negligência vos fez contrair em dias passados algo de pecaminoso, seja isto penitenciado pela censura do jejum e pelo devotamento da misericórdia. Jejuemos na quarta e na sexta-feira, para sábado celebrarmos juntos as vigílias, com a habitual devoção. Por Cristo, Nosso Senhor que vive e reina com o Pai e o Espírito santo, pelos séculos dos séculos. Amém

NOTAS:

1 At 2,1-4
2 Gn 1,2
3 Jo 16,12-13.15
4 Mt 12,32
5 lCor 12,3
6 lCor 12,4-6

sábado, 5 de maio de 2012

Para o futuro da sociedade jovens formados na fé

Bento XVI a um grupo de bispos dos Estados Unidos em visita «ad limina Apostolorum»

A contribuição que as instituições educativas católicas podem oferecer para a construção de «uma sociedade cada vez mais firmemente radicada num humanismo autêntico», foi realçada pelo Papa no discurso dirigido a um grupo de bispos dos Estados Unidos da América, recebidos em audiência na manhã de sábado, 5 de Maio, por ocasião da visita ad limina Apostolorum.
No discurso, totalmente dedicado à «questão da educação religiosa e da formação na fé da próxima geração de católicos» norte-americanos, Bento XVI frisou principalmente a necessidade de «preservar o grande patrimônio» das escolas católicas americanas, garantindo sobretudo que «elas estejam abertas a todas as famílias, seja qual for a sua situação econômica». Para o Pontífice estas instituições não devem ser apenas «um recurso fundamental para a nova evangelização» mas devem oferecer também uma «importante contribuição a toda a sociedade americana». Contribuição que, ressaltou, «deveria ser apreciada e apoiada com mais urgência».
O Papa chamou também a atenção para a necessidade de manter firme a identidade católica destas instituições, «na fidelidade aos próprios ideais fundadores e à missão da Igreja no serviço ao Evangelho». Uma questão sobre a qual, afirmou, «há ainda muito a fazer». Eis por que a advertência a não alimentar desarmonia entre representantes das instituições católicas e «a guia pastoral da Igreja»: tais divergências «danificam o testemunho da Igreja» e facilmente podem ser usadas para comprometer a sua autoridade e liberdade».
Contudo, para Bento XVI a educação dos jovens na fé representa «o desafio mais urgente» que os católicos norte-americanos devem enfrentar. E a este propósito o Papa exortou a ter em consideração a exigência de «formar os corações», assim como de «transmitir conhecimentos», e de encorajar os estudantes a alcançar «uma visão da harmonia entre fé e razão capaz de guiar uma busca do conhecimento e da virtude que permaneça para sempre». Para concluir, não é suficiente garantir só o ensino da religião ou a presença de uma capelania num instituto: são necessários, da parte dos professores, uma autêntica «paixão intelectual» e um compromisso para integrar fé e vida numa «unidade fundamental».



segunda-feira, 23 de abril de 2012

Cânticos protestantes em celebrações católicas? Vão ter que se explicar no juízo final.

Inspirado pelo amigo Everton Santos, publico este texto do saudoso dom Estevão Bittencourt, OSB, curto, porém consistente sobre essa "moda" que paira sobre a Liturgia Católica.



Não é conveniente adotar cânticos protestantes em celebrações católicas pelas razões seguintes:

1) Lex orandi lex credendi (Nós oramos de acordo com aquilo que cremos). Isto quer dizer: existe grande afinidade entre as fórmulas de fé e as fórmulas de oração; a fé se exprime na oração, já diziam os escritores cristãos dos primeiros séculos. No século IV, por ocasião da controvérsia ariana (que debatia a Divindade do Filho), os hereges queriam incutir o arianismo através de hinos religiosos, ao que S. Ambrósio opôs os hinos ambrosianos.

Mais ainda: nos séculos XVII-XIX o Galicanismo propugnava a existência de Igrejas nacionais subordinadas não ao Papa, mas ao monarca. Em conseqüência foi criado o calendário galicano, no qual estava inserida a festa de São Napoleão, que podia ser entendido como um mártir da Igreja antiga ou como sendo o Imperador Napoleão.

Pois bem, os protestantes têm seus cantos religiosos através de cuja letra se exprime a fé protestante. O católico que utiliza esses cânticos, não pode deixar de assimilar aos poucos a mentalidade protestante; esta é, em certos casos, mais subjetiva e sentimental do que a católica.

2) Os cantos protestantes ignoram verdades centrais do Cristianismo: a Eucaristia, a Comunhão dos Santos, a Igreja Mãe e Mestra... esses temas não podem faltar numa autêntica espiritualidade cristã.

3) Deve-se estimular a produção de cânticos católicos com base na doutrina da fé.

sexta-feira, 23 de março de 2012

A Sagrada Eucaristia


Eucaristia. Na crise de fé que estamos vivendo, o ponto neurálgico é, cada vez mais, a reta celebração e a reta compreensão da Eucaristia.
Todos nós sabemos qual é a diferença entre uma igreja onde se reza e uma igreja reduzida a um museu. Hoje corremos o risco do que as nossas igrejas se convertam em museus e acabem como os museus: se não fecharem, serão espoliados. Não têm vida. A medida da vitalidade de uma igreja, a medida da sua abertura interior, mostrar-se-á pelo fato de as suas portas poderem permanecer abertas, precisamente por ser uma igreja onde se reza continuamente.
Orar diante da Eucaristia.  "Também posso rezar no bosque, mergulhado na natureza". É claro que se pode. Mas se só se pudesse rezar assim, a iniciativa da oração estaria totalmente dentro de nós: Deus seria pouco mais do que um postulado do nosso pensamento. Que Ele responda ou queira responder, permaneceria  uma questão em aberto. Em contrapartida, a Eucaristia significa:  Deus respondeu. A Eucaristia é Deus como resposta, como presença que responde. Agora, a iniciativa da relação divino-humana já não depende de nós, mas dEle, e assim se  torna verdadeiramente séria.  Por isso, a oração atinge um nível inteiramente novo no âmbito da adoração eucarística; só agora envolve as duas partes, só agora é séria. Mais ainda, não envolve apenas as duas partes, mas só agora se torna plenamente universal: quando rezamos na presença da Eucaristia, nunca estamos sós. Conosco reza toda a Igreja que celebra a Eucaristia. Nessa oração, já não estamos diante de um Deus pensado, mas diante de um Deus que verdadeiramente se entregou a nós; diante de um Deus que se fez comunhão conosco, e assim nos liberta dos nossos limites e nos conduz à Ressurreição. Esta é a oração que devemos voltar a buscar.
Culto eucarístico. O culto é tomar consciência da queda [do pecado original], é, por assim dizer, o instante do arrependimento do filho pródigo, o voltar-o-olhar-para-a-origem. Na medida em que, segundo muitas filosofias, o conhecimento e o ser coincidem, o fato de se voltar o olhar para o Princípio constitui também, e ao mesmo tempo, uma nova ascensão para Ele.
Desde [o momento em que tiveram lugar] a Cruz e a Ressurreição de Jesus, a Eucaristia é o ponto de encontro de todas as linhas da Antiga Aliança, e até da História das religiões em geral: o culto verdadeiro, sempre esperado e que sempre supera as possibilidades humanas, a adoração em espírito e verdade.
Que ninguém diga agora: a Eucaristia existe para ser comida, não para ser adorada. Como sublinham uma e outra vez as tradições mais antigas, não é de forma alguma um pão corrente. Comê-la é um processo espiritual que abarca toda a realidade humana. Comer Cristo significa adorar a Cristo. Comê-lo significa deixá-lo entrar em mim de modo que o meu "eu" seja transformado e se abra ao grande "nós", de maneira que cheguemos a ser um só com Ele. Desta forma, a adoração não se opõe à comunhão nem se situa paralelamente a ela. A comunhão só atinge toda a sua profundidade se estiver sustentada e compreendida pela adoração. A presença eucarística no tabernáculo não cria outro conceito da Eucaristia paralelo ou oposto à celebração eucarística, antes constitui a sua plena realização.
Eucaristia e sacrifício.  A Eucaristia é sacrifício. Ao ouvirmos esta frase, experimentamos resistência no nosso íntimo. Levanta-se a pergunta: Quando falamos de sacrifício, não estaremos formando uma imagem indigna, ou pelo menos ingênua, de Deus? Não acabaremos pensando que nós, os homens, podemos e até devemos dar algo a Deus? A Eucaristia responde precisamente a essas questões. A primeira coisa que nos diz é que Deus se entrega a nós para que nós possamos, por nossa vez, dar-nos a Ele. No sacrifício de Jesus Cristo, a iniciativa vem de Deus. No começo, foi Ele quem se abaixou primeiro. Cristo não é uma oferenda que nós, os homens, apresentamos a um Deus irritado; pelo contrário, o facto de Ele estar aqui, de viver, sofrer e amar, já é obra do amor de Deus. É o amor misericordioso de Deus que se abaixa até nós; é o Senhor quem se faz a si mesmo servo por nós. Embora sejamos nós que causamos o conflito, e embora o culpado não seja Deus, mas nós, é Ele quem vem ao nosso encontro e quem, em Cristo, pede a reconciliação.
Quanto mais andamos com Ele, mais conscientes nos tornamos de que o Deus que parece atormentar-nos é na verdade o único que nos ama realmente e o único a quem podemos abandonar-nos sem resistência nem medo. Quanto mais penetramos na noite desse mistério incompreendido, mais confiamos nEle, mais o encontramos, mais descobrimos o amor e a liberdade que nos sustentam em todas as outras noites. Deus dá para que nós possamos dar: esta é a essência do sacrifício eucarístico, do sacrifício de Jesus Cristo.

(Excertos dos livros Il Dio Vicino e Introdução ao Espírito da Liturgia de Joseph Ratzinger)

domingo, 11 de março de 2012

O diabo realmente existe?


Os cristãos reconhecem, desde sempre, a existência de um ser maligno – ou vários seres malignos – de natureza angélica, cuja atuação se dirige a afastar o homem de Deus, submetendo-o às forças do mal, por meio da tentação. De fato, Cristo se fez homem e morreu na cruz para libertar o homem desse estado de sofrimento em que se encontrava devido ao pecado original. A existência do demônio faz parte, portanto, da verdade revelada.
No entanto, a crença cristã é muito diferente da de outras religiões: não existe um “deus do mal”, oposto ao Deus do bem. Ao contrário, segundo a teologia católica de São Tomás de Aquino, o mal não existe em si mesmo, mas como ausência de bem, como rejeição do amor de Deus. Segundo a doutrina cristã, o demônio pode incitar o homem ao mal, mas não pode tirar sua liberdade; não tem poder sobre a sua alma se o homem não lhe conceder isso.
O demônio é um anjo criado por Deus – na tradição cristã, recebe os nomes de Satanás ou Lúcifer – que usou a sua liberdade para opor-se ao amor divino. Deus permite a sua existência e a sua rebeldia, mas o demônio está submetido ao seu Criador, como as demais potências angélicas. Esta é uma das razões pelas quais a teologia cristã não se preocupou muito com o demônio em si, mas com como Cristo conseguiu a vitória sobre ele e como combater o seu poder na vida cristã.
O Antigo Testamento considera os anjos e os demônios como criaturas de Deus, Criador de tudo o que é visível e invisível. Mas os textos que falam de Satanás no Antigo Testamento são muito raros. É depois do exílio da Babilônia que se nota uma evolução: o mal entre os homens vem de Satanás (“satan”, em hebraico, significa “adversário”), devido ao pecado de Adão (Gn 3), quando, “pela inveja da serpente, a morte entrou no mundo” (Sb 2, 24). Satanás é o tentador, o acusador, o adversário de Deus (Zc 3, 1-7, Jó 1, 11). Quase dois séculos antes de Cristo, a comunidade monástica de Qumram, às margens do Mar Morto, elaborou uma demonologia estruturada.
Mas é nos quatro Evangelhos que a presença de Satanás adquire uma densidade particular: é um adversário real, inimigo de Cristo e do seu Reino. Jesus se dirige a Satanás, sem dúvida alguma, para repreendê-lo e fala dele como de “alguém”. São conhecidas as passagens das tentações no deserto (Mt 4, 1-11) e dos numerosos exorcismos que Jesus realizou (Cafarnaum: Mc 1, 23-28; Gerasa: Mt 8, 28-34; a filha da cananeia: Mc 7, 25-29 – entre outros). Os escritos apostólicos e o Apocalipse recolhem esta vitória de Cristo, que se consumará no final dos tempos.
O Magistério e a Tradição da Igreja, tanto no ensinamento como na liturgia, abordaram sempre esta verdade. O Catecismo da Igreja Católica fala do demônio cerca de 40 vezes. Também a vida de muitos santos, que tiveram experiência direta de luta contra o demônio, constitui um testemunho sobre a sua existência.
Por que Deus, se é bom, todo-poderoso e detesta o mal, permite que os demônios ajam e tenham poder sobre o homem? É um grande mistério, o “mysterium iniquitatis”. Deus criou o homem – e os anjos – por amor e deseja que o homem o ame em troca. Mas não existe amor sem liberdade, razão pela qual Deus dá espaço ao homem para que este escolha amá-lo. Só Deus possui uma liberdade perfeita, incapaz de escolher o mal. O homem e os anjos podem rejeitar esse amor.
Por que Deus não destruiu os anjos caídos? Há duas razões: a primeira é que Deus respeita essa liberdade que Ele mesmo oferece; a segunda é que, de alguma maneira, Deus se serve também deles para realizar seus desígnios. Santo Agostinho afirma que Deus não permitiria o mal se não fosse para tirar dele um bem maior. De fato, é o que acontece com a história da redenção, na qual o mal é finalmente vencido pelo bem. Deus redimiu o mundo do pecado, mas sem deixar de respeitar a liberdade do homem, que pode acolher ou rejeitar esta redenção.
Os cristãos acreditam que a vitória definitiva do bem e a destruição definitiva do mal se darão no final dos tempos. Enquanto isso, o tempo em que vivemos se caracteriza por esta luta entre o bem e o mal. A vida dos santos testemunha esta luta, às vezes face a face, com os demônios.
O demônio age de forma cotidiana na vida de cada pessoa, mediante a tentação e a sedução, para incliná-la a cometer o mal. Esta ação pode ser combatida mediante a oração e a prática das virtudes, com o auxílio dos sacramentos. A Igreja afirma que o homem não está condicionado absolutamente pela tendência ao mal, mas que pode combatê-lo com a ajuda da graça.
O demônio também pode se manifestar de forma extraordinária, mediante a possessão, a infestação, o assédio, a obsessão etc. Trata-se de fenômenos muito raros, nos quais Satanás chega a possuir o corpo – não a alma – de uma pessoa. A Igreja combate este fenômeno por meio do ritual do exorcismo, realizado por sacerdotes designados especificamente para isso por seu bispo.
No entanto, são poucos os casos de verdadeira possessão. Antes da prática do exorcismo, são realizados todos os tipos de exames médicos e psiquiátricos, para descartar a possibilidade de distúrbios psicológicos. Muitas das pessoas que sofrem de possessão diabólica realizaram práticas nigromânticas ou satânicas. Muito excepcionalmente, alguns santos experimentaram esta dura provação.
Há cada vez mais adolescentes afetados pelo fenômeno do satanismo, que se tornou uma “moda” transgressora. O Pe. Benoît Domergue, especialista nestes fenômenos, afirma que atualmente, na França, existem aproximadamente 50 associações, que agrupam cerca de 5 mil indivíduos. O satanismo é tão preocupante, que as autoridades francesas se envolveram. Em 2006, a (Mission interministérielle de vigilance et de lutte contre les dérives sectaires) publicou um pequeno relatório sobre o satanismo, no qual alertava sobre este tipo de grupos.
Na Espanha, segundo um relatório elaborado em 2010 pela Red Iberoamericana para el Estudio de las Sectas(RIES), o número das seitas satânicas no país aumentou na última década, passando de 41, em 2001, a 61, em 2010. Estes grupos estariam relacionados a episódios de profanações e roubos sacrílegos em igrejas. Certos tipos de música metal (black metal, death metal, neometal) também constituem uma porta de entrada privilegiada para o satanismo. Este universo se torna ainda mais nebuloso por ser formado por muitos pequenos grupos, inexistentes do ponto de vista jurídico ou associativo.
Em países como a Colômbia, segundo denunciam alguns especialistas, o satanismo se vincula ao tráfico de drogas, como uma prática para “garantir” o êxito dessa atividade criminal, e também como forma de submetimento social. Outro caminho para a prática do satanismo é a bruxaria e a necromancia. Além do satanismo, existe outro tipo de seitas, chamadas “luciferinas”, que, sem chegar ao extremos do satanismo, promovem uma reinterpretação da queda do homem, invertendo os termos: Deus é o ser mau e Satanás e o ser bom que se rebela contra Ele.