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sábado, 25 de fevereiro de 2012

REFLEXÃO SOBRE DEUS

por Francisco Augusto Carmil Catão*


    São muitas as razões pelas quais a teologia — entendida hoje, em geral, como estudo da religião, ritos, idéias, práticas e instituições, até mesmo nos ambientes católicos de formação eclesiástica — tende a relegar para segundo plano a reflexão sobre Deus. Vão desde as dificuldades epistemológicas da existência e das “nominações” clássicas de Deus, de natureza metafísica, até o relativismo reinante na análise do fenômeno religioso, ou, ainda, às atitudes práticas, predominantemente políticas, que levam a conceber a missão da Igreja como voltada não tanto para o face a face com Deus, mas, principalmente, para a promoção humana de um mundo em que vigore a justiça e a paz.

O lugar de Deus na vida humana

    Não nos compete entrar, aqui, na discussão desses aspectos teóricos e práticos, teológicos, eclesiológicos e pastorais. Do ponto de vista da teologia espiritual, que é nosso foco, gostaríamos de tecer algumas considerações preliminares a respeito do lugar que Deus é chamado a ocupar na nossa vida pessoal e da comunidade cristã a que pertencemos.
    A grande dificuldade, como vem sendo denunciado há tempos, é a dissociação entre a fé e a vida, entendendo-se por fé, basicamente, o crer em Deus, que constitui o primeiro artigo do credo, e por vida o feixe de motivações e preocupações que norteiam o cotidiano da maioria das pessoas. Constata-se que Deus deixou de ser a motivação e a preocupação primeira de nossa vida pessoal e eclesial, como o fora para Jesus, que se alimentava de fazer a vontade do Pai.
    Como superar esse obstáculo, tanto mais grave quanto atinge as próprias raízes da vida e da fé? Não basta saberque se pode demonstrar a existência de Deus nem admiti-la, nos termos que ensina a Igreja, nem, ainda, falar corretamente de Deus nos termos que adota toda a tradição cristã: é indispensável articular prática e pragmaticamente a fé em Deus com nosso modo de pensar e de agir. É patente, hoje em dia, que a maioria das pessoas, mesmo nas suas expectativas e práticas religiosas, não vive senão, quando muito, indiretamente, em função de Deus, Criador do universo. Pautam a vida pela Palavra de Deus encarnada e inspiram-se no seu amor.
    Essa dissociação, mortal para todas as pessoas, como para a sociedade, pode-se explicar pela quebra do laço experiencial que objetivamente vincula Deus à realidade do mundo e da vida. Num contexto cultural secularizado, em que até mesmo o sagrado é concebido como pura expressão da subjetividade e a devoção estimulada unicamente em termos moralizantes de empenho opcional do sujeito, Deus, de fato, perde sentido e converte-se, quando não negado, em bandeira daqueles que defendem suas idéias religiosas, sua moral e sua devoção.
    Trata-se, portanto, nesse caso, de redescobrir os laços entre a realidade do mundo e da vida e o transcendente, sem o que nada teria sentido nem valeria a pena ser vivido. Em termos técnicos da tradição católica, trata-se de redescobrir as vias pelas quais se pode demonstrar que tudo que existe, manifesta Deus, vem de Deus e se encaminha para Deus, de tal sorte que o mundo e a vida só têm sentido a partir de Deus e em função de Deus.
    O caminho concreto, pois, que nos leva à afirmação da realidade primeira, transcendente, a que denominamos Deus, desempenha um papel fundamental não apenas no discurso sobre Deus, mas sobretudo na vida concreta de todo dia, das pessoas e da sociedade.

A dimensão transcendente da experiência

    Em contraste com o passado, em que predominava a fidelidade à tradição da família ou do povo, consubstanciada nas instituições públicas e religiosas, o que realmente conta, nos dias de hoje, é a experiência pessoal. A onda emancipatória característica da Modernidade solapou a autoridade em nome da autonomia das pessoas. Custou para a tradição cristã, em especial a católica, admitir essa situação. A mudança de perspectiva só foi acolhida a partir do Vaticano II, cujo olhar otimista sobre a história, abraçado por João XXIII, o papa que convocou o Concílio, induziu-nos a buscar o fundamento da vida pessoal e social na dignidade da própria pessoa, como insistem não só o atual papa, Bento XVI, como a mais importante síntese recente do ensinamento social da Igreja.
    Partir da dignidade da pessoa significa colocar a experiência pessoal da relação com a realidade primeira, que designamos por Deus, na fonte de nossa percepção e nomeação de Deus. Numa perspectiva, portanto, existencial, o reconhecimento de Deus só pode brotar de uma experiência pessoal no que tem de próprio, como experiência feita pela pessoa na linha de sua vocação específica, que é a de relacionar, conhecer a amar outra pessoa.
    Tal experiência distingue-se da experiência em que se baseiam as ciências, exatas e humanas, bem assim como das experiências puramente sensíveis, sensuais ou artísticas. É indispensável que nosso discurso sobre Deus assente-se na experiência pessoal propriamente dita, que comporta uma dimensão relacional, por ser experiência de si mesmo, como ser inteligente, aberto ao outro, capaz de amar sem limites. Para redescobrir o laço entre o mundo, a vida e Deus, é preciso vivenciar a experiência da relação pessoal mais íntima, com a intimidade daquele que vem a nós como criador e salvador, preenchendo as aspirações mais radicais de nosso coração. Sob esse aspecto, a experiência de Deus brota do autoconhecimento, enquanto Deus torna-se manifesto como o Outro por quem sonhamos em nosso coração inquieto. Noverim me noverim Te — “conhecer-me é conhecer-te” — parafrasearia Agostinho.
    Todo discurso sobre Deus que não parta do autoconhecimento carecerá de bases tanto objetivas como subjetivas. Objetivas porque estaria fundado unicamente numa crença transmitida pelo contexto religioso em que nos situamos, sem laço efetivo com o conhecimento sobre o qual se baseia, de fato, a nossa vida. Subjetivas porque uma crença em Deus sem apoio no que sustenta e norteia a pessoa é uma crença desvinculada da vida, fundada numa religiosidade superficial, de base puramente emotiva ou de conveniência social, incapaz de pesar decisivamente na orientação profunda da vida das pessoas e da sociedade.
    Quais seriam, porém, os caminhos a seguir nos dias de hoje para articular o autoconhecimento com o reconhecimento da realidade primeira a que denominamos Deus? Como despertar para a dimensão transcendente da experiência pessoal? Coloca-se, aqui, um problema pastoral de primordial importância, num certo sentido, o problema pastoral por excelência, a ser enfrentado pela evangelização e pela catequese: como abrir o caminho para que as pessoas integrem Deus como Outro em sua experiência de vida?
    Em abstrato, não se pode dar à questão uma resposta inteiramente satisfatória. Não há receita espiritual que seja universal. O mais que se pode pretender é indicar alguns parâmetros, capazes de orientar a ação do evangelizador, do formador ou do diretor espiritual, na sua função básica de facilitar o caminho para a percepção da transcendência.
    Sem entrar em maiores detalhes, porém, permitimo-nos, aqui, sugerir três direções que podem ser seguidas, que denominamos, para melhor distingui-las, vias axiológica, simbólica e a metafísica.
    Note-se que, do ponto de vista da teologia espiritual, não se trata, a bem dizer, de analisar objetivamente a consistência epistemológica de cada uma dessas vias, senão de avaliar seu peso prático na dinâmica do autoconhecimento em vista da percepção do Outro. Não as submetemos, a bem dizer, a uma análise racional objetiva, situando seus diferentes passos no quadro dos princípios que comandam o raciocínio demonstrativo propriamente dito, mas encaramo-las como dados que atendem à busca de sentido pelo sujeito, empregando a razão para ordenar coerentemente seus pressupostos, contando com a intuição e com a afetividade, que buscam na relação com o outro o cumprimento de seus próprios sonhos.

A via axiológica

    A importância da via axiológica provém do fato de que, hoje, de um modo geral na cultura e, em especial, talvez, na esfera da educação, se venha acentuando o alcance pedagógico do trabalho com os valores. Mesmo sem analisar as contingências culturais que estão na raiz do pensamento axiológico, é certo que a consideração dos valores, passando pela via do autoconhecimento, permite oferecer um sólido fundamento à compreensão do que dá sentido à vida, conferindo referenciais acessíveis em torno dos quais se pode ordenar a existência das pessoas e da sociedade.
    Consulte-se, sob esse ângulo, o pequeno ensaio de John F. Haught:
Se nos sentirmos encorajados a nos abrir à profundidade (do autoconhecimento), deixando-nos arrebatar pelas profundezas de nossa vida, é porque existe um fundamento último para nossa existência, uma companhia última em nossa solidão, O abismo é apenas uma vertente da experiência
do autoconhecimento, que nos permite, através dos valores que nos povoam a vida, encontrar alguém que satisfaça nossa busca de sentido. Nessa perspectiva, a obra analisa com sucesso cinco valores manifestadores da transcendência em nossa cultura: a profundidade, o futuro, a liberdade, a beleza e a verdade, propondo, assim, a partir do autoconhecimento, um itinerário válido para a percepção do mistério, que é Deus.

A via simbólica

    A via simbólica tem sua base na estrutura mesma da linguagem humana e, em particular, da linguagem religiosa, inclusive na Bíblia. A única forma de referirmo-nos ao outro como tal é pelo emprego da linguagem simbólica. A principal função do símbolo na vida humana, existencialmente considerada, é exprimir o reconhecimento e o amor ao outro. Esse significado que vem junto às realidades diretamente significadas constitui-as símbolos do relacionamento com o outro, em si mesmo inefável e invisível. Toda a linguagem religiosa banha no símbolo, justamente porque é a forma congênita do conhecer humano exprimir as realidades que ultrapassam o âmbito de nossas experiências diretas. O símbolo é intrínseco, não somente à linguagem, mas à própria condição humana no seu relacionamento com o que dá sentido à vida e permite a convergência de toda nossa atividade vital e cognitiva num foco primordial transcendente de realidade e de sentido, que é Deus.
    No seu estudo sobre o símbolo, José María Mardones MARDONES, J. M. A vida do símbolo. A dimensão simbólica da religião. São Paulo, Paulinas, 2006. aponta-o como caminho para a transcendência. Caminho capaz de superar todos os impasses em que se meteu a Modernidade, que abandonou as perspectivas da metafísica clássica em seu progressivo empenho de emancipar totalmente a razão. Conseqüentemente, caíram não apenas as bases dogmáticas, mas até mesmo seus fundamentos metafísicos. Em última análise, o próprio Deus, alheio, justamente por ser Deus, a uma razão que tudo pretendia conhecer de maneira clara e distinta.
    Na Modernidade tardia, em que se reconhece a existência de domínios do saber e da vida, que escapam ao âmbito da razão, o símbolo permite uma outra relação com o real, capaz de acolher a tradição e de fundar um discurso baseado na alteridade, do momento em que se admite um conhecimento mais do que puramente objetivo e representativo, mas em que se exprime uma experiência de vida relacional. O discurso sobre Deus, com efeito, não pode ser reduzido ou assimilado ao discurso sobre um objeto de conhecimento, por mais espiritual e abstrato que seja, mas situa-se em continuidade com o discurso a respeito de uma pessoa com que se entra em relação, cuja experiência de conhecimento e de comunhão não encontra expressão humana senão pelo recurso à linguagem simbólica.

A via metafísica

    A via metafísica, largamente praticada pela Antigüidade clássica em suas diversas formas, com base em passagens célebres da Escritura, tornou-se, hoje, pouco acessível aos diversos ambientes culturais marcados pela Modernidade. Continua, porém, não só válida, mas até primordial, enquanto constitui, de fato, o mecanismo de fundo sobre o qual operam todas as outras vias de acesso à transcendência. Nesse sentido, é indispensável considerá-la, do ponto de vista da revelação cristã, pois todo o discurso cristão sobre Deus funda-se, em última análise, no reconhecimento de uma realidade primeira existente além de todas as realidades que têm a dependência e a finitude inscritas na complexidade do seu ser, enquanto não são existentes por si mesmas, mas existem em virtude do ser recebido, distinto de sua essência.
    É importante dar-se conta de que a relação humana de pessoa a pessoa, em cujo quadro se inscreve o conhecimento de Deus, não escapa às exigências metafísicas do conhecer humano. Pelo contrário, como hoje é cada vez mais amplamente reconhecido, em especial pela tradição cristã, a razão, longe de obstar, constitui a única ponte de que humanamente dispomos para elaborar um discurso global esclarecedor de nossa vocação pessoal e comunitária.
    Esse dado, captado pela razão na experiência humana por via indireta, passando pelo que se denominou a negação do limite ou momento apofático da inteligência, assegura não só a afirmação da existência do transcendente, como serve de base e garantia de que a razão é capaz de acolher a coerência do Outro que vem a nós e está na raiz de tudo o que existe. A revelação permitirá reconhecer, no mesmo primeiro princípio, Deus, a razão de todo o existente, expressão de sua Palavra sustentada por seu Espírito. Nesse sentido, a teologia da Trindade requer o percorrer da via metafísica, sob pena de ficar no ar e ser proposta como uma idéia desvinculada da experiência humana e da existência das coisas que diretamente conhecemos.
    Tomás de Aquino resumiu, na segunda questão da Suma teológica, os referenciais da via metafísica, mostrando que, embora em si mesma a realidade primeira comporte a existência em seu conceito, por ser realidade necessária, não se nos manifesta senão a partir do que diretamente conhecemos, que nos proporciona uma base consistente para reconhecer-lhe, senão em si mesma, que é inefável, pelo menos a partir de seus efeitos: o movimento limitado, o ser causado, a contingência, a perfeição limitada, por participação, enfim, o ser finalizado, como o observamos no universo, colocam-nos em face um transcendente Outro, que preenche toda a nossa sede de alguém. Fora da base metafísica, aqui expressa nas cinco vias inspiradas na tradição filosófica helênica, todo o discurso sobre Deus carece de verdadeiro fundamento.

Conclusão

    As dificuldades encontradas na Modernidade para reconhecer a importância fundamental da experiência pessoal estão na raiz do não-reconhecimento do lugar próprio de Deus na vida humana, que tem como sintomas não só a indiferença religiosa, até o ateísmo, como também o desenvolvimento de uma religiosidade emocional ou ideológica, voltado para os bens temporais da saúde e da justiça, quando não do bem-estar e da prosperidade, mais do que para o louvor, que é o reconhecimento de Deus como Deus.
    O caminho para redescobrir existencialmente o lugar de Deus, a ser trilhado tanto pela comunidade cristã como pelos cristãos individualmente, poderia passar pelo reconhecimento da transcendência inerente à universidade dos valores verdadeiramente humanos e pela efetiva restauração da linguagem simbólica, que apontam, como uma sadia metafísica no-lo faz reconhecer, para a existência indiscutível de um Outro, a que denominamos Deus.
*Doutor em Teologia pela Universidade de Strasbourg. Docente da UNISAL - Pio XI e Faculdade de São Bento.
Extraído do site: Ciberteologia -  Revista de Teologia & Cultura Edição nº 11 - Ano III - Maio/Junho 2007 - ISSN: 1809-2888. http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/index.php/espiritualidade/deus/

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Mensagem de Sua Santidade, o Papa Bento XVI dirigida ao presidente da CNBB por ocasião da CF 2012


(grifos meus)
Ao Venerado Irmão
CARDEAL RAYMUNDO DAMASCENO ASSIS
Arcebispo de Aparecida (SP) e Presidente da CNBB
Fraternas saudações em Cristo Senhor!
De bom grado me associo à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que lança uma nova Campanha da Fraternidade, sob o lema “que a saúde se difunda sobre a terra” (cf. Ecio 38,8), com o objetivo de suscitar, a partir de uma reflexão sobre a realidade da saúde no Brasil, um maior espírito fraterno e comunitário na atenção dos enfermos e levar a sociedade a garantir a mais pessoas o direito de ter acesso aos meios necessários para uma vida saudável.
Para os cristãos, de modo particular, o lema bíblico é uma lembrança de que a saúde vai muito além de um simples bem-estar corporal. No episódio da cura de um paralítico (cf. Mi_ 9, 2-8), Jesus, antes de fazer com que esse voltasse a andar, perdoa-lhe os pecados, ensinando que a cura perfeita é o perdão dos pecados, e a saúde por excelência é a da alma, pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua alma?» (Mi 16,26). Com efeito, as palavras saúde e salvação têm origem no mesmo termo latino ‘salus’ e não por outra razão, nos Evangelhos, vemos a ação do Salvador da humanidade associada a diversas curas: “Jesus andava por toda a Galiléia, ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando todo o tipo de doença e enfermidades do povo” (Mt 4,23).
Com o seu exemplo diante dos olhos, segundo o verdadeiro espírito quaresmal, possa esta Campanha inspirar no coração dos fiéis e das pessoas de boa vontade urna solidariedade cada vez mais profunda para com os enfermos, tantas vezes sofrendo mais pela solidão e abandono do que pela doença, lembrando que o próprio Jesus quis Se identificar com eles: (pois Eu estava doente e cuidastes de Mim» (Mt 2536). Ajudando-lhes ao mesmo tempo a descobrir que se, por um lado, a doença é prova dolorosa, por outro, pode ser, na união com Cristo crucificado e ressuscitado, uma participação no mistério do sofrimento d’Ele para a salvação do mundo. Pois, «oferecendo o nosso sofrimento a Deus por meio de Cristo, nós podemos colaborar na vitória do bem sobre o mal, porque Deus toma fecunda a nossa oferta, o nosso ato de amor» (Bento XVI, Discurso aos enfermos de Turim, 2/V/2010).
Associando-me, pois, a esta iniciativa da CNBB e fazendo minhas as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias de cada um, saúdo fraternalmente quantos tomam parte, física ou espiritualmente, na Campanha «Fraternidade e Saúde Pública», invocando — pela intercessão de Nossa Senhora Aparecida — para todos, mas de modo especial para os doentes, o conforto e a fortaleza de Deus no cumprimento do dever de estado, individual, familiar e social, fonte de saúde e progresso do Brasil, tornando-se fértil na santidade, próspero na economia, justo na participação das riquezas, alegre no serviço público, equânime no poder e fraterno no desenvolvimento. E, para confirmar-lhes nestes bons propósitos, envio uma propiciadora Bênção Apostólica.
Vaticano, 11 de fevereiro de 2012

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Mensagem de Sua Santidade Bento XVI para a Quaresma 2012




«Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos
ao amor e às boas obras» (
Heb 10, 24)

Irmãos e irmãs!
A Quaresma oferece-nos a oportunidade de reflectir mais uma vez sobre o cerne da vida cristã: o amor. Com efeito este é um tempo propício para renovarmos, com a ajuda da Palavra de Deus e dos Sacramentos, o nosso caminho pessoal e comunitário de fé. Trata-se de um percurso marcado pela oração e a partilha, pelo silêncio e o jejum, com a esperança de viver a alegria pascal.
Desejo, este ano, propor alguns pensamentos inspirados num breve texto bíblico tirado da Carta aos Hebreus: «Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras» (10, 24). Esta frase aparece inserida numa passagem onde o escritor sagrado exorta a ter confiança em Jesus Cristo como Sumo Sacerdote, que nos obteve o perdão e o acesso a Deus. O fruto do acolhimento de Cristo é uma vida edificada segundo as três virtudes teologais: trata-se de nos aproximarmos do Senhor «com um coração sincero, com a plena segurança da » (v. 22), de conservarmos firmemente «a profissão da nossa esperança» (v. 23), numa solicitude constante por praticar, juntamente com os irmãos, «o amor e as boas obras» (v. 24). Na passagem em questão afirma-se também que é importante, para apoiar esta conduta evangélica, participar nos encontros litúrgicos e na oração da comunidade, com os olhos fixos na meta escatológica: a plena comunhão em Deus (v. 25). Detenho-me no versículo 24, que, em poucas palavras, oferece um ensinamento precioso e sempre actual sobre três aspectos da vida cristã: prestar atenção ao outro, a reciprocidade e a santidade pessoal.
1. «Prestemos atenção»: a responsabilidade pelo irmão.
O primeiro elemento é o convite a «prestar atenção»: o verbo grego usado é katanoein, que significa observar bem, estar atento, olhar conscienciosamente, dar-se conta de uma realidade. Encontramo-lo no Evangelho, quando Jesus convida os discípulos a «observar» as aves do céu, que não se preocupam com o alimento e todavia são objecto de solícita e cuidadosa Providência divina (cf. Lc 12, 24), e a «dar-se conta» da trave que têm na própria vista antes de reparar no argueiro que está na vista do irmão (cf. Lc 6, 41). Encontramos o referido verbo também noutro trecho da mesma Carta aos Hebreus, quando convida a «considerar Jesus» (3, 1) como o Apóstolo e o Sumo Sacerdote da nossa fé. Por conseguinte o verbo, que aparece na abertura da nossa exortação, convida a fixar o olhar no outro, a começar por Jesus, e a estar atentos uns aos outros, a não se mostrar alheio e indiferente ao destino dos irmãos. Mas, com frequência, prevalece a atitude contrária: a indiferença, o desinteresse, que nascem do egoísmo, mascarado por uma aparência de respeito pela «esfera privada». Também hoje ressoa, com vigor, a voz do Senhor que chama cada um de nós a cuidar do outro. Também hoje Deus nos pede para sermos o «guarda» dos nossos irmãos (cf. Gn 4, 9), para estabelecermos relações caracterizadas por recíproca solicitude, pela atenção ao bem do outro e a todo o seu bem. O grande mandamento do amor ao próximo exige e incita a consciência a sentir-se responsável por quem, como eu, é criatura e filho de Deus: o facto de sermos irmãos em humanidade e, em muitos casos, também na fé deve levar-nos a ver no outro um verdadeiro alter ego, infinitamente amado pelo Senhor. Se cultivarmos este olhar de fraternidade, brotarão naturalmente do nosso coração a solidariedade, a justiça, bem como a misericórdia e a compaixão. O Servo de Deus Paulo VI afirmava que o mundo actual sofre sobretudo de falta de fraternidade: «O mundo está doente. O seu mal reside mais na crise de fraternidade entre os homens e entre os povos, do que na esterilização ou no monopólio, que alguns fazem, dos recursos do universo» (Carta enc. Populorum progressio, 66).
A atenção ao outro inclui que se deseje, para ele ou para ela, o bem sob todos os seus aspectos: físico, moral e espiritual. Parece que a cultura contemporânea perdeu o sentido do bem e do mal, sendo necessário reafirmar com vigor que o bem existe e vence, porque Deus é «bom e faz o bem» (Sal 119/118, 68). O bem é aquilo que suscita, protege e promove a vida, a fraternidade e a comunhão. Assim a responsabilidade pelo próximo significa querer e favorecer o bem do outro, desejando que também ele se abra à lógica do bem; interessar-se pelo irmão quer dizer abrir os olhos às suas necessidades. A Sagrada Escritura adverte contra o perigo de ter o coração endurecido por uma espécie de «anestesia espiritual», que nos torna cegos aos sofrimentos alheios. O evangelista Lucas narra duas parábolas de Jesus, nas quais são indicados dois exemplos desta situação que se pode criar no coração do homem. Na parábola do bom Samaritano, o sacerdote e o levita, com indiferença, «passam ao largo» do homem assaltado e espancado pelos salteadores (cf. Lc 10, 30-32), e, na do rico avarento, um homem saciado de bens não se dá conta da condição do pobre Lázaro que morre de fome à sua porta (cf. Lc 16, 19). Em ambos os casos, deparamo-nos com o contrário de «prestar atenção», de olhar com amor e compaixão. O que é que impede este olhar feito de humanidade e de carinho pelo irmão? Com frequência, é a riqueza material e a saciedade, mas pode ser também o antepor a tudo os nossos interesses e preocupações próprias. Sempre devemos ser capazes de «ter misericórdia» por quem sofre; o nosso coração nunca deve estar tão absorvido pelas nossas coisas e problemas que fique surdo ao brado do pobre. Diversamente, a humildade de coração e a experiência pessoal do sofrimento podem, precisamente, revelar-se fonte de um despertar interior para a compaixão e a empatia: «O justo conhece a causa dos pobres, porém o ímpio não o compreende» (Prov 29, 7). Deste modo entende-se a bem-aventurança «dos que choram» (Mt 5, 4), isto é, de quantos são capazes de sair de si mesmos porque se comoveram com o sofrimento alheio. O encontro com o outro e a abertura do coração às suas necessidades são ocasião de salvação e de bem-aventurança.
O facto de «prestar atenção» ao irmão inclui, igualmente, a solicitude pelo seu bem espiritual. E aqui desejo recordar um aspecto da vida cristã que me parece esquecido: a correcção fraterna, tendo em vista a salvação eterna. De forma geral, hoje é-se muito sensível ao tema do cuidado e do amor que visa o bem físico e material dos outros, mas quase não se fala da responsabilidade espiritual pelos irmãos. Na Igreja dos primeiros tempos não era assim, como não o é nas comunidades verdadeiramente maduras na fé, nas quais se tem a peito não só a saúde corporal do irmão, mas também a da sua alma tendo em vista o seu destino derradeiro. Lemos na Sagrada Escritura: «Repreende o sábio e ele te amará. Dá conselhos ao sábio e ele tornar-se-á ainda mais sábio, ensina o justo e ele aumentará o seu saber» (Prov 9, 8-9). O próprio Cristo manda repreender o irmão que cometeu um pecado (cf. Mt 18, 15). O verbo usado para exprimir a correcção fraterna – elenchein – é o mesmo que indica a missão profética, própria dos cristãos, de denunciar uma geração que se faz condescendente com o mal (cf. Ef 5, 11). A tradição da Igreja enumera entre as obras espirituais de misericórdia a de «corrigir os que erram». É importante recuperar esta dimensão do amor cristão. Não devemos ficar calados diante do mal. Penso aqui na atitude daqueles cristãos que preferem, por respeito humano ou mera comodidade, adequar-se à mentalidade comum em vez de alertar os próprios irmãos contra modos de pensar e agir que contradizem a verdade e não seguem o caminho do bem. Entretanto a advertência cristã nunca há-de ser animada por espírito de condenação ou censura; é sempre movida pelo amor e a misericórdia e brota duma verdadeira solicitude pelo bem do irmão. Diz o apóstolo Paulo: «Se porventura um homem for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi essa pessoa com espírito de mansidão, e tu olha para ti próprio, não estejas também tu a ser tentado» (Gl 6, 1). Neste nosso mundo impregnado de individualismo, é necessário redescobrir a importância da correcção fraterna, para caminharmos juntos para a santidade. É que «sete vezes cai o justo» (Prov 24, 16) – diz a Escritura –, e todos nós somos frágeis e imperfeitos (cf. 1 Jo 1, 8). Por isso, é um grande serviço ajudar, e deixar-se ajudar, a ler com verdade dentro de si mesmo, para melhorar a própria vida e seguir mais rectamente o caminho do Senhor. Há sempre necessidade de um olhar que ama e corrige, que conhece e reconhece, que discerne e perdoa (cf. Lc 22, 61), como fez, e faz, Deus com cada um de nós.
2. «Uns aos outros»: o dom da reciprocidade.
O facto de sermos o «guarda» dos outros contrasta com uma mentalidade que, reduzindo a vida unicamente à dimensão terrena, deixa de a considerar na sua perspectiva escatológica e aceita qualquer opção moral em nome da liberdade individual. Uma sociedade como a actual pode tornar-se surda quer aos sofrimentos físicos, quer às exigências espirituais e morais da vida. Não deve ser assim na comunidade cristã! O apóstolo Paulo convida a procurar o que «leva à paz e à edificação mútua» (Rm 14, 19), favorecendo o «próximo no bem, em ordem à construção da comunidade» (Rm 15, 2), sem buscar «o próprio interesse, mas o do maior número, a fim de que eles sejam salvos» (1 Cor 10, 33). Esta recíproca correcção e exortação, em espírito de humildade e de amor, deve fazer parte da vida da comunidade cristã.
Os discípulos do Senhor, unidos a Cristo através da Eucaristia, vivem numa comunhão que os liga uns aos outros como membros de um só corpo. Isto significa que o outro me pertence: a sua vida, a sua salvação têm a ver com a minha vida e a minha salvação. Tocamos aqui um elemento muito profundo da comunhão: a nossa existência está ligada com a dos outros, quer no bem quer no mal; tanto o pecado como as obras de amor possuem também uma dimensão social. Na Igreja, corpo místico de Cristo, verifica-se esta reciprocidade: a comunidade não cessa de fazer penitência e implorar perdão para os pecados dos seus filhos, mas alegra-se contínua e jubilosamente também com os testemunhos de virtude e de amor que nela se manifestam. Que «os membros tenham a mesma solicitude uns para com os outros» (1 Cor 12, 25) – afirma São Paulo –, porque somos um e o mesmo corpo. O amor pelos irmãos, do qual é expressão a esmola – típica prática quaresmal, juntamente com a oração e o jejum – radica-se nesta pertença comum. Também com a preocupação concreta pelos mais pobres, pode cada cristão expressar a sua participação no único corpo que é a Igreja. E é também atenção aos outros na reciprocidade saber reconhecer o bem que o Senhor faz neles e agradecer com eles pelos prodígios da graça que Deus, bom e omnipotente, continua a realizar nos seus filhos. Quando um cristão vislumbra no outro a acção do Espírito Santo, não pode deixar de se alegrar e dar glória ao Pai celeste (cf. Mt 5, 16).
3. «Para nos estimularmos ao amor e às boas obras»: caminhar juntos na santidade.
Esta afirmação da Carta aos Hebreus (10, 24) impele-nos a considerar a vocação universal à santidade como o caminho constante na vida espiritual, a aspirar aos carismas mais elevados e a um amor cada vez mais alto e fecundo (cf. 1 Cor 12, 31 – 13, 13). A atenção recíproca tem como finalidade estimular-se, mutuamente, a um amor efectivo sempre maior, «como a luz da aurora, que cresce até ao romper do dia» (Prov 4, 18), à espera de viver o dia sem ocaso em Deus. O tempo, que nos é concedido na nossa vida, é precioso para descobrir e realizar as boas obras, no amor de Deus. Assim a própria Igreja cresce e se desenvolve para chegar à plena maturidade de Cristo (cf.Ef 4, 13). É nesta perspectiva dinâmica de crescimento que se situa a nossa exortação a estimular-nos reciprocamente para chegar à plenitude do amor e das boas obras.
Infelizmente, está sempre presente a tentação da tibieza, de sufocar o Espírito, da recusa de «pôr a render os talentos» que nos foram dados para bem nosso e dos outros (cf. Mt 25, 24-28). Todos recebemos riquezas espirituais ou materiais úteis para a realização do plano divino, para o bem da Igreja e para a nossa salvação pessoal (cf. Lc 12, 21; 1 Tm 6, 18). Os mestres espirituais lembram que, na vida de fé, quem não avança, recua. Queridos irmãos e irmãs, acolhamos o convite, sempre actual, para tendermos à «medida alta da vida cristã» (João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte, 31). A Igreja, na sua sabedoria, ao reconhecer e proclamar a bem-aventurança e a santidade de alguns cristãos exemplares, tem como finalidade também suscitar o desejo de imitar as suas virtudes. São Paulo exorta: «Adiantai-vos uns aos outros na mútua estima» (Rm 12, 10).
Que todos, à vista de um mundo que exige dos cristãos um renovado testemunho de amor e fidelidade ao Senhor, sintam a urgência de esforçar-se por adiantar no amor, no serviço e nas obras boas (cf. Heb 6, 10). Este apelo ressoa particularmente forte neste tempo santo de preparação para a Páscoa. Com votos de uma Quaresma santa e fecunda, confio-vos à intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria e, de coração, concedo a todos a Bênção Apostólica.
Vaticano, 3 de Novembro de 2011

BENEDICTUS PP. XVI

DISCURSO DO SANTO PADRE BENTO XVI



Basílica Vaticana
Sabato, 18 de fevereiro de 2012


«Tu es Petrus, et super hanc petram ædificabo Ecclesiam meam».

Venerados Irmãos,
Amados irmãos e irmãs!

Com estas palavras do cântico de entrada, teve início o rito solene e sugestivo do Consistório Ordinário Público para a criação dos novos Cardeais, que inclui a imposição do barrete cardinalício, a entrega do anel e a atribuição do título. Trata-se das palavras com que Jesus constituiu, eficazmente, Pedro como firme alicerce da Igreja. E o factor qualificativo deste alicerce é a fé: realmente Simão torna-se Pedro – rocha – por ter professado a sua fé em Jesus, Messias e Filho de Deus. Quando anuncia Cristo, a Igreja está ligada a Pedro, e Pedro permanece colocado na Igreja como rocha; mas, quem edifica a Igreja, é o próprio Cristo, sendo Pedro um elemento particular da construção. E deve sê-lo por meio da fidelidade à sua confissão feita junto de Cesareia de Filipe, ou seja, em virtude da afirmação: «Tu és Cristo, o Filho de Deus vivo».

As palavras, que Jesus dirige a Pedro, põem claramente em destaque o carácter eclesial da celebração de hoje. De facto, através da atribuição do título duma igreja desta Cidade [de Roma] ou duma diocese suburbicária, os novos Cardeais ficam, para todos os efeitos, inseridos na Igreja de Roma guiada pelo Sucessor de Pedro, para cooperar estreitamente com ele no governo da Igreja universal. Estes dilectos Irmãos, que dentro de momentos começarão a fazer parte do Colégio Cardinalício, unir-se-ão, por vínculos novos e mais fortes, não só com o Pontífice Romano mas também com toda a comunidade dos fiéis espalhada pelo mundo inteiro. Com efeito, no desempenho do seu peculiar serviço de apoio ao ministério petrino, os neo-purpurados serão chamados a analisar e avaliar os casos, os problemas e os critérios pastorais que dizem respeito à missão da Igreja inteira. Nesta delicada tarefa, servir-lhes-á de exemplo e ajuda o testemunho de fé prestado pelo Príncipe dos Apóstolos, com a sua vida e morte, pois, por amor de Cristo, deu-se inteiramente até ao sacrifício extremo.

É com este significado que se deve entender também a imposição do barrete vermelho. Aos novos Cardeais, é confiado o serviço do amor: amor a Deus, amor à sua Igreja, amor aos irmãos com dedicação absoluta e incondicional – se for necessário – até ao derramamento do sangue, como diz a fórmula para a imposição do barrete cardinalício e como indica a cor vermelha das vestes que trazem. Além disso, é-lhes pedido que sirvam a Igreja com amor e vigor, com a clareza e a sabedoria dos mestres, com a energia e a fortaleza dos pastores, com a fidelidade e a coragem dos mártires. Trata-se de ser servidores eminentes da Igreja, que encontra em Pedro o fundamento visível da unidade.

No texto evangélico há pouco proclamado, Jesus apresenta-Se como servo, oferecendo-Se como modelo a imitar e a seguir. No cenário de fundo do terceiro anúncio da paixão, morte e ressurreição do Filho do Homem, sobressai, pelo seu clamoroso contraste, a cena dos dois filhos de Zebedeu, Tiago e João, que, ao lado de Jesus, ainda correm atrás de sonhos de glória. Pediram-Lhe: «Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda» (Mc 10, 37). Contundente é a resposta de Jesus, e inesperada a sua pergunta: «Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu bebo?» (Mc 10, 38). A alusão é claríssima: o cálice é o da paixão, que Jesus aceita para cumprir a vontade do Pai. O serviço a Deus e aos irmãos, a doação de si mesmo: esta é a lógica que a fé autêntica imprime e gera na nossa existência quotidiana, mas que está em contradição com o estilo mundano do poder e da glória.

Com o seu pedido, Tiago e João mostram que não compreendem a lógica de vida que Jesus testemunha, aquela lógica que deve – segundo o Mestre –caracterizar o discípulo no seu espírito e nas suas acções. E a lógica errada não reside só nos dois filhos de Zebedeu, mas, segundo o evangelista, contagia também «os outros dez» apóstolos, que «começaram a indignar-se contra Tiago e João» (Mc 10, 41). Indignam-se, porque não é fácil entrar na lógica do Evangelho, deixando a do poder e da glória. São João Crisóstomo afirma que ainda eram imperfeitos os apóstolos todos: tanto os dois que procuravam obter precedência sobre os outros dez, como os dez que tinham inveja dos dois (cf. Comentário a Mateus, 65, 4: PG 58, 622). E São Cirilo de Alexandria, ao comentar passagens paralelas no Evangelho de Lucas, acrescenta: «Os discípulos caíram na fraqueza humana e puseram-se a discutir uns com os outros qual deles seria o chefe, ficando superior aos outros. (…) Isto aconteceu e foi-nos narrado para nosso proveito. (…) O que sucedeu aos santos Apóstolos pode revelar-se, para nós, um estímulo à humildade» (Comentário a Lucas, 12, 5, 24: PG 72, 912). Este episódio deu ocasião a Jesus para Se dirigir a todos os discípulos e «chamá-los a Si», de certo modo para os estreitar a Si, a fim de formarem como que um corpo único e indivisível com Ele, e indicar qual é a estrada para se chegar à verdadeira glória, a de Deus: «Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e como os grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo, e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos» (Mc 10, 42-44).

Domínio e serviço, egoísmo e altruísmo, posse e dom, lucro e gratuidade: estas lógicas, profundamente contrastantes, defrontam-se em todo o tempo e lugar. Não há dúvida alguma sobre a estrada escolhida por Jesus: e não Se limita a indicá-la por palavras aos discípulos de ontem e de hoje, mas vive-a na sua própria carne. Efectivamente explica: «Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua via em resgate por muitos» (Mc 10, 45). Estas palavras iluminam, com singular intensidade, o Consistório público de hoje. Ecoam no fundo da alma e constituem um convite e um apelo, um legado e um encorajamento especialmente para vós, amados e venerados Irmãos que estais para ser incluídos no Colégio Cardinalício.

Segundo a tradição bíblica, o Filho do Homem é aquele que recebe de Deus o poder e o domínio (cf. Dn 7, 13-14). Jesus interpreta a sua missão na terra, sobrepondo à figura do Filho do Homem a imagem do Servo sofredor descrita por Isaías (cf. Is 53, 1-12). Ele recebe o poder e a glória apenas enquanto «servo»; mas é servo na medida em que assume sobre Si o destino de sofrimento e de pecado da humanidade inteira. O seu serviço realiza-se na fidelidade total e na plena responsabilidade pelos homens. Por isso, a livre aceitação da sua morte violenta torna-se o preço de libertação para muitos, torna-se o princípio e o fundamento da redenção de cada homem e de todo o género humano.

Amados Irmãos que estais para ser inscritos no Colégio Cardinalício! Que a doação total de Si mesmo, feita por Cristo na cruz, vos sirva de norma, estímulo e força para uma fé que actua na caridade. Que a vossa missão na Igreja e no mundo se situe sempre e só «em Cristo» e corresponda à sua lógica e não à do mundo, sendo iluminada pela fé e animada pela caridade que nos vem da Cruz gloriosa do Senhor. No anel que daqui a pouco vos entregarei, aparecem representados São Pedro e São Paulo e, no centro, uma estrela que evoca Nossa Senhora. Trazendo este anel, sois convidados diariamente a recordar o testemunho de Cristo que os dois Apóstolos deram até ao seu martírio aqui em Roma, tornando assim fecunda a Igreja com o seu sangue. Por sua vez a evocação da Virgem Maria constituirá para vós um convite incessante a seguir Aquela que permaneceu firme na fé e serva humilde do Senhor.

Ao concluir esta breve reflexão, quero dirigir a minha grata e cordial saudação a todos vós aqui presentes, particularmente às Delegações oficiais de diversos Países e aos Representantes de numerosas dioceses. No seu serviço, os novos Cardeais são chamados a permanecer fiéis a Cristo, deixando-se guiar unicamente pelo seu Evangelho. Amados irmãos e irmãs, rezai para que possa reflectir-se ao vivo neles o Senhor Jesus, o nosso único Pastor e Mestre e a fonte de toda a sabedoria que indica a estrada a todos. E rezai também por mim, para que sempre possa oferecer ao Povo de Deus o testemunho da doutrina segura e reger, com suave firmeza, o timão da santa Igreja.  


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Católica, Apostólica, Romana e... Triunfante


Ao longo de sua bimilenar História, a Igreja caminhou sempre sob o signo da perseguição. Entretanto, a cada investida das forças adversárias, brilha ela com maior esplendor.

O sinal dos verdadeiros discípulos
Conta-se que São Pio X, durante audiência aos membros de um dos colégios eclesiásticos romanos, perguntou aos jovens estudantes:
- Quais são as notas distintivas da verdadeira Igreja de Cristo?
- São quatro, Santo Padre: Una, Santa, Católica e Apostólica - respondeu um deles.
- Não há mais de quatro? - indagou o Papa.
- Ela é também Romana: Una, Santa, Católica, Apostólica e Romana.
- Exatamente, mas não falta mencionar ainda uma característica das mais evidentes? -- insistiu o Pontífice.
Após um instante de silêncio, ele próprio respondeu:
- Ela é também perseguida! Esse é o sinal de sermos verdadeiros discípulos de Jesus Cristo.

Ódio contra Cristo e sua Igreja
A Igreja é perseguida. De fato, sem essa nota não se entende bem a história da Esposa de Cristo, que já começa sob esse signo na mais tenra infância do seu Divino Fundador. Que mal poderia fazer a Herodes aquele Menino, filho de carpinteiro, nascido numa gruta e deitado numa manjedoura? Nenhum. Mas na ímpia tentativa de tirar-Lhe a vida, o tetrarca não hesitou
em mandar assassinar crianças inocentes.
Ao longo da vida pública de Jesus, o ódio contra Ele não fez senão crescer, e chegou ao paroxismo quando os fariseus tomaram a decisão de matá-Lo e obtiveram de Pilatos a iníqua sentença de condenação. De tal forma detestavam o Divino Mestre, que não toleravam sequer vê-Lo fazer o bem, ou ensinar a doutrina da Salvação.
Nessa mesma inimizade encontra-se a fonte das investidas sofridas pela Igreja após a subida de Nosso Senhor ao Céu. Assim, foi movido por ódio furibundo contra os cristãos que Nero deu início, no ano 64, à sangrenta perseguição que haveria de durar, com intermitências, até 313, quando o Imperador Constantino concedeu liberdade à Igreja, pelo Edito de Milão.
E ao longo dos séculos subsequentes, a Esposa de Cristo nunca deixou de enfrentar os mais variados ataques - por vezes cruentos - e incessantes oposições, ora abertas, ora solapadas. Mesmo em nossos dias, este ódio contra aqueles que praticam o bem não deixa de se manifestar em seus múltiplos aspectos.

Os maus não suportam os bons
"Se o mundo vos odeia, sabei que primeiro Me odiou a Mim. Lembrai-vos da palavra que Eu vos disse: ‘O servo não é maior que seu Senhor'. Se Me perseguiram a Mim, também a vós vos perseguirão" (Jo 15, 18.20). Por estas palavras de Jesus, vemos serem a adversidade e a incompreensão inerentes à existência terrena do verdadeiro fiel, pela irreversível incompatibilidade entre a doutrina do mundo e a de Cristo. Pois, desde o tempo dos nossos primeiros pais, há entre a bendita posteridade de Maria Santíssima e a raça da serpente maldita o irreconciliável antagonismo descrito pelo Gênesis: "Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar" (Gn 3, 15).
Os maus não suportam os bons, e para estes, o ódio daqueles indica eleição por parte de Deus, conforme se depreende destas palavras de São Jerônimo a Santo Agostinho: "Sois celebrado por todo o mundo. Os católicos veneram e reconhecem em vós o restaurador da antiga Fé, e - o que é sinal de glória ainda maior - todos os hereges vos detestam e perseguem com o mesmo ódio que a mim, anelando matar-nos com o desejo, já que não podem fazê-lo com as armas". É na fidelidade dos justos diante das perseguições que reluz de modo especial a glória de Deus.
Ao anunciar aos Apóstolos as perseguições e sofrimentos que haveriam de enfrentar, Nosso Senhor tinha em vista também instruir os cristãos de todos os tempos, porque inúmeras vezes ao longo da História a proclamação do nome de Jesus Cristo lhes trará como consequência serem injustamente presos, perseguidos ou conduzidos aos tribunais. E isto chegará ao auge nos últimos tempos, pois quanto maior for a decadência moral da humanidade, inelutavelmente mais ódio haverá contra os justos, cuja mera existência já representa muda censura aos maus.
Bem pondera São Gregório Magno: "A última tribulação será precedida de muitas outras, porque devem vir antes muitos males que possam anunciar o mal sem fim".

Testemunhas da fé na hora da provação
Errôneo seria pensar que durante as perseguições cabe aos bons ficarem encolhidos e timoratos, incapazes de qualquer ação. Pelo contrário, dão-lhes elas ensejo a testemunharem com coragem a boa doutrina diante daqueles que se desviaram do caminho certo.
Ao afirmar que as portas do inferno não prevalecerão contra a sua Igreja (cf. Mt 16, 18), estabeleceu o Divino Fundador que ela será não apenas invencível, mas sempre triunfante. Assim, por mais que os infernos, não podendo destruí-la, se organizem para sufocá-la, jamais conseguirão impedir sua atuação. E, sejam quais forem as aparências, a Luz de Cristo permanecerá em sua Esposa com todo o seu poder e grandeza, aguardando o momento de manifestar-se de forma intensa, majestosa e irresistível.
Nessas horas de tempestade, suscita a Providência testemunhas da fé que sejam fachos da Luz de Cristo a rasgar a obscuridade da provação. Muitas vezes, inclusive, Deus Se utiliza de instrumentos frágeis, de modo a deixar mais patente sua onipotência: Gedeão, último homem da tribo de Manassés; Judite, piedosa viúva; e os próprios Apóstolos, simples pescadores. E, se percorrermos as grandes aparições da Virgem Maria, desde Guadalupe até Fátima, a quem vemos como receptores da mensagem, senão pessoas de escassa cultura e predicados?
Quanto aos acontecimentos do fim do mundo, serão justamente a firmeza na fé e a força impetratória dos fiéis, perante o ódio insaciável dos sequazes do anticristo, que atrairão a intervenção divina, desencadeando o castigo final.

Deus é o principal Ator da História
Julgamos, por vezes, serem raríssimas as intervenções de Deus nos acontecimentos terrenos. Como se Ele, após criar o universo, deixasse os fatos correrem por si, procedendo de forma semelhante a alguém que planta uma árvore e se despreocupa totalmente do seu crescimento. Nada mais contrário à realidade. Deus não só age na História, mas, sobretudo, é seu principal Ator. Tudo está em suas santíssimas mãos, nada foge ao seu governo: "Em Deus vivemos, nos movemos, e somos" (At 17, 28).
Às vezes, a ação da Divina Providência nos fatos concretos é visível aos olhos de todos, por ser desígnio seu torná-la patente. Porém, na maior parte das ocasiões, Ela opera de forma oculta ou discreta, deixando por conta do nosso entendimento e da nossa fé discernir o cunho de sua atuação.
O Criador tem tudo contado, pesado e medido. E, ao agir sobre os acontecimentos, tem sempre em vista, junto com a própria glória, a salvação dos que são seus. Por isso, afirma São Paulo: "Tudo quanto acontece, concorre para benefício dos justos" (Rm 8, 28).
Cada um dos nossos atos, gestos ou atitudes serão consignados no Livro da Vida. Nenhum ato de virtude ficará sem recompensa, conforme afirma São Beda: "Não cairá um só fio de cabelo da cabeça dos discípulos do Senhor, porque não somente as grandes ações e as palavras dos santos, mas também o menor de seus pensamentos será dignamente premiado".

Esperança na vida verdadeira
Todos nós, como os Apóstolos, estamos sujeitos a passar por situações difíceis em razão de nossa fidelidade a Cristo. Como devemos nos comportar diante delas?
Antes de tudo, precisamos crer firmemente na onipotência de Nosso Senhor e ter bem presente seu amor por cada um de nós, conforme nos exorta Santo Agostinho: "Essa é a Fé cristã, católica e apostólica. Confiai em Cristo que diz: ‘não cairá sequer um fio de vossos cabelos', e, uma vez eliminada a incredulidade, considerai o quanto valeis. Quem de nós pode ser desprezado por nosso Redentor, se nem sequer um fio de cabelo o será? Ou: como duvidaremos de que dará a vida inteira à nossa carne e à nossa alma Aquele que, por amor a nós, recebeu alma e carne na qual morreu, e a recobrou para que desaparecesse o temor de morrer?".
Mas também não podemos duvidar de que Jesus Se encarnou para nos fazer partícipes de sua ressurreição: "Se Cristo não ressuscitou, vossa fé é vã" (I Cor 15, 17), proclama São Paulo.
Uma vez compenetrados de estarmos de passagem nesta Terra, a caminho da eternidade, todos os males que possamos sofrer tomam outra dimensão. "Quem sabe que é um peregrino neste mundo, independentemente do local onde se encontre corporalmente; quem sabe que tem uma pátria eterna no Céu; quem tem certeza de que ali se encontra a região da vida feliz, a qual aqui é lícito desejar, mas não é possível ter, e arde nesse desejo tão bom, santo e casto - esse vive aqui pacientemente".
É permanecendo firmes na Fé que ganharemos a verdadeira vida; é só na perspectiva da glória eterna que teremos forças para perseverar na hora das provações. E isto não depende tanto do nosso esforço quanto da graça divina, que devemos pedir sem cessar.

 Proclamar a beleza triunfante da Igreja
O filósofo iluminista François-Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo de Voltaire, foi um dos mais festejados ímpios de todos os tempos. Seu ódio contra a Igreja o levou a afirmar: "Estou cansado de ouvir dizer que bastaram doze homens para implantar o Cristianismo no mundo, e quero provar que basta um para destruí-lo". Mas, o atrevido ateu morreu e a ridícula ameaça caiu no vazio.
Não menos arrogante com a Esposa de Cristo foi Napoleão Bonaparte. Após ser excomungado pelo Papa Pio VII, teve a petulância de perguntar sarcasticamente ao legado papal, Cardeal Caprara, se por causa disso iriam cair as armas das mãos dos seus soldados. Ora, segundo narram testemunhas oculares, entre as quais o Conde de Ségur, foi o que aconteceu durante a campanha da Rússia: "As armas dos soldados pareciam ser de um peso insuportável para seus braços intumescidos; em suas frequentes quedas, escapavam-lhes das mãos, quebravam-se ou perdiam-se na neve".
Meses depois, Bonaparte viu-se obrigado a assinar o decreto de sua própria destituição no palácio de Fontainebleau, onde mantivera cativo o Vigário de Cristo, e partiu para o exílio. Pio VII, entretanto, a quem ele chamara despectivamente de "velho", ainda haveria de reinar por quase uma década, sobrevivendo por dois anos ao prisioneiro da Ilha de Santa Helena. E, assim, poderíamos multiplicar os exemplos mostrando "ser uma característica da Igreja vencer quando atacada, ser melhor compreendida quando contestada e ganhar terreno quando abandonada", segundo ensina Santo Hilário de Poitiers. Ao que o padre Monsabré acrescenta: "muitas vezes, no curso da Era Cristã, pôde-se ver o Corpo Místico do Filho de Deus a ponto de perecer, muitas vezes pôde-se vê-lo recobrar vida e avançar com passo resoluto rumo aos dias da eternidade".
Os períodos de perseguição nos convidam a depositar uma fé inquebrantável em Cristo e em sua Igreja, mas também a amá-Los de um modo todo especial. "Em tempo de grandes prevaricações", afirma o Cardeal Gomá, "até os bons se tornam tíbios. Contudo, em meio às defecções e tibiezas, perseverarão os fortes, os que guardarem a fé e os bons costumes cristãos. Estes se salvarão: "Quem perseverar até o fim, será salvo" (Mt 24, 13). Sendo constantes, obtereis a salvação".
Ao nos situar diante de uma grandiosa perspectiva escatológica, o Evangelho deste domingo nos incita a proclamar a beleza triunfante da Santa Igreja, na confiança plena de que quem permanecer filialmente no seu seio obterá como prêmio o próprio Deus!