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sábado, 25 de fevereiro de 2012

REFLEXÃO SOBRE DEUS

por Francisco Augusto Carmil Catão*


    São muitas as razões pelas quais a teologia — entendida hoje, em geral, como estudo da religião, ritos, idéias, práticas e instituições, até mesmo nos ambientes católicos de formação eclesiástica — tende a relegar para segundo plano a reflexão sobre Deus. Vão desde as dificuldades epistemológicas da existência e das “nominações” clássicas de Deus, de natureza metafísica, até o relativismo reinante na análise do fenômeno religioso, ou, ainda, às atitudes práticas, predominantemente políticas, que levam a conceber a missão da Igreja como voltada não tanto para o face a face com Deus, mas, principalmente, para a promoção humana de um mundo em que vigore a justiça e a paz.

O lugar de Deus na vida humana

    Não nos compete entrar, aqui, na discussão desses aspectos teóricos e práticos, teológicos, eclesiológicos e pastorais. Do ponto de vista da teologia espiritual, que é nosso foco, gostaríamos de tecer algumas considerações preliminares a respeito do lugar que Deus é chamado a ocupar na nossa vida pessoal e da comunidade cristã a que pertencemos.
    A grande dificuldade, como vem sendo denunciado há tempos, é a dissociação entre a fé e a vida, entendendo-se por fé, basicamente, o crer em Deus, que constitui o primeiro artigo do credo, e por vida o feixe de motivações e preocupações que norteiam o cotidiano da maioria das pessoas. Constata-se que Deus deixou de ser a motivação e a preocupação primeira de nossa vida pessoal e eclesial, como o fora para Jesus, que se alimentava de fazer a vontade do Pai.
    Como superar esse obstáculo, tanto mais grave quanto atinge as próprias raízes da vida e da fé? Não basta saberque se pode demonstrar a existência de Deus nem admiti-la, nos termos que ensina a Igreja, nem, ainda, falar corretamente de Deus nos termos que adota toda a tradição cristã: é indispensável articular prática e pragmaticamente a fé em Deus com nosso modo de pensar e de agir. É patente, hoje em dia, que a maioria das pessoas, mesmo nas suas expectativas e práticas religiosas, não vive senão, quando muito, indiretamente, em função de Deus, Criador do universo. Pautam a vida pela Palavra de Deus encarnada e inspiram-se no seu amor.
    Essa dissociação, mortal para todas as pessoas, como para a sociedade, pode-se explicar pela quebra do laço experiencial que objetivamente vincula Deus à realidade do mundo e da vida. Num contexto cultural secularizado, em que até mesmo o sagrado é concebido como pura expressão da subjetividade e a devoção estimulada unicamente em termos moralizantes de empenho opcional do sujeito, Deus, de fato, perde sentido e converte-se, quando não negado, em bandeira daqueles que defendem suas idéias religiosas, sua moral e sua devoção.
    Trata-se, portanto, nesse caso, de redescobrir os laços entre a realidade do mundo e da vida e o transcendente, sem o que nada teria sentido nem valeria a pena ser vivido. Em termos técnicos da tradição católica, trata-se de redescobrir as vias pelas quais se pode demonstrar que tudo que existe, manifesta Deus, vem de Deus e se encaminha para Deus, de tal sorte que o mundo e a vida só têm sentido a partir de Deus e em função de Deus.
    O caminho concreto, pois, que nos leva à afirmação da realidade primeira, transcendente, a que denominamos Deus, desempenha um papel fundamental não apenas no discurso sobre Deus, mas sobretudo na vida concreta de todo dia, das pessoas e da sociedade.

A dimensão transcendente da experiência

    Em contraste com o passado, em que predominava a fidelidade à tradição da família ou do povo, consubstanciada nas instituições públicas e religiosas, o que realmente conta, nos dias de hoje, é a experiência pessoal. A onda emancipatória característica da Modernidade solapou a autoridade em nome da autonomia das pessoas. Custou para a tradição cristã, em especial a católica, admitir essa situação. A mudança de perspectiva só foi acolhida a partir do Vaticano II, cujo olhar otimista sobre a história, abraçado por João XXIII, o papa que convocou o Concílio, induziu-nos a buscar o fundamento da vida pessoal e social na dignidade da própria pessoa, como insistem não só o atual papa, Bento XVI, como a mais importante síntese recente do ensinamento social da Igreja.
    Partir da dignidade da pessoa significa colocar a experiência pessoal da relação com a realidade primeira, que designamos por Deus, na fonte de nossa percepção e nomeação de Deus. Numa perspectiva, portanto, existencial, o reconhecimento de Deus só pode brotar de uma experiência pessoal no que tem de próprio, como experiência feita pela pessoa na linha de sua vocação específica, que é a de relacionar, conhecer a amar outra pessoa.
    Tal experiência distingue-se da experiência em que se baseiam as ciências, exatas e humanas, bem assim como das experiências puramente sensíveis, sensuais ou artísticas. É indispensável que nosso discurso sobre Deus assente-se na experiência pessoal propriamente dita, que comporta uma dimensão relacional, por ser experiência de si mesmo, como ser inteligente, aberto ao outro, capaz de amar sem limites. Para redescobrir o laço entre o mundo, a vida e Deus, é preciso vivenciar a experiência da relação pessoal mais íntima, com a intimidade daquele que vem a nós como criador e salvador, preenchendo as aspirações mais radicais de nosso coração. Sob esse aspecto, a experiência de Deus brota do autoconhecimento, enquanto Deus torna-se manifesto como o Outro por quem sonhamos em nosso coração inquieto. Noverim me noverim Te — “conhecer-me é conhecer-te” — parafrasearia Agostinho.
    Todo discurso sobre Deus que não parta do autoconhecimento carecerá de bases tanto objetivas como subjetivas. Objetivas porque estaria fundado unicamente numa crença transmitida pelo contexto religioso em que nos situamos, sem laço efetivo com o conhecimento sobre o qual se baseia, de fato, a nossa vida. Subjetivas porque uma crença em Deus sem apoio no que sustenta e norteia a pessoa é uma crença desvinculada da vida, fundada numa religiosidade superficial, de base puramente emotiva ou de conveniência social, incapaz de pesar decisivamente na orientação profunda da vida das pessoas e da sociedade.
    Quais seriam, porém, os caminhos a seguir nos dias de hoje para articular o autoconhecimento com o reconhecimento da realidade primeira a que denominamos Deus? Como despertar para a dimensão transcendente da experiência pessoal? Coloca-se, aqui, um problema pastoral de primordial importância, num certo sentido, o problema pastoral por excelência, a ser enfrentado pela evangelização e pela catequese: como abrir o caminho para que as pessoas integrem Deus como Outro em sua experiência de vida?
    Em abstrato, não se pode dar à questão uma resposta inteiramente satisfatória. Não há receita espiritual que seja universal. O mais que se pode pretender é indicar alguns parâmetros, capazes de orientar a ação do evangelizador, do formador ou do diretor espiritual, na sua função básica de facilitar o caminho para a percepção da transcendência.
    Sem entrar em maiores detalhes, porém, permitimo-nos, aqui, sugerir três direções que podem ser seguidas, que denominamos, para melhor distingui-las, vias axiológica, simbólica e a metafísica.
    Note-se que, do ponto de vista da teologia espiritual, não se trata, a bem dizer, de analisar objetivamente a consistência epistemológica de cada uma dessas vias, senão de avaliar seu peso prático na dinâmica do autoconhecimento em vista da percepção do Outro. Não as submetemos, a bem dizer, a uma análise racional objetiva, situando seus diferentes passos no quadro dos princípios que comandam o raciocínio demonstrativo propriamente dito, mas encaramo-las como dados que atendem à busca de sentido pelo sujeito, empregando a razão para ordenar coerentemente seus pressupostos, contando com a intuição e com a afetividade, que buscam na relação com o outro o cumprimento de seus próprios sonhos.

A via axiológica

    A importância da via axiológica provém do fato de que, hoje, de um modo geral na cultura e, em especial, talvez, na esfera da educação, se venha acentuando o alcance pedagógico do trabalho com os valores. Mesmo sem analisar as contingências culturais que estão na raiz do pensamento axiológico, é certo que a consideração dos valores, passando pela via do autoconhecimento, permite oferecer um sólido fundamento à compreensão do que dá sentido à vida, conferindo referenciais acessíveis em torno dos quais se pode ordenar a existência das pessoas e da sociedade.
    Consulte-se, sob esse ângulo, o pequeno ensaio de John F. Haught:
Se nos sentirmos encorajados a nos abrir à profundidade (do autoconhecimento), deixando-nos arrebatar pelas profundezas de nossa vida, é porque existe um fundamento último para nossa existência, uma companhia última em nossa solidão, O abismo é apenas uma vertente da experiência
do autoconhecimento, que nos permite, através dos valores que nos povoam a vida, encontrar alguém que satisfaça nossa busca de sentido. Nessa perspectiva, a obra analisa com sucesso cinco valores manifestadores da transcendência em nossa cultura: a profundidade, o futuro, a liberdade, a beleza e a verdade, propondo, assim, a partir do autoconhecimento, um itinerário válido para a percepção do mistério, que é Deus.

A via simbólica

    A via simbólica tem sua base na estrutura mesma da linguagem humana e, em particular, da linguagem religiosa, inclusive na Bíblia. A única forma de referirmo-nos ao outro como tal é pelo emprego da linguagem simbólica. A principal função do símbolo na vida humana, existencialmente considerada, é exprimir o reconhecimento e o amor ao outro. Esse significado que vem junto às realidades diretamente significadas constitui-as símbolos do relacionamento com o outro, em si mesmo inefável e invisível. Toda a linguagem religiosa banha no símbolo, justamente porque é a forma congênita do conhecer humano exprimir as realidades que ultrapassam o âmbito de nossas experiências diretas. O símbolo é intrínseco, não somente à linguagem, mas à própria condição humana no seu relacionamento com o que dá sentido à vida e permite a convergência de toda nossa atividade vital e cognitiva num foco primordial transcendente de realidade e de sentido, que é Deus.
    No seu estudo sobre o símbolo, José María Mardones MARDONES, J. M. A vida do símbolo. A dimensão simbólica da religião. São Paulo, Paulinas, 2006. aponta-o como caminho para a transcendência. Caminho capaz de superar todos os impasses em que se meteu a Modernidade, que abandonou as perspectivas da metafísica clássica em seu progressivo empenho de emancipar totalmente a razão. Conseqüentemente, caíram não apenas as bases dogmáticas, mas até mesmo seus fundamentos metafísicos. Em última análise, o próprio Deus, alheio, justamente por ser Deus, a uma razão que tudo pretendia conhecer de maneira clara e distinta.
    Na Modernidade tardia, em que se reconhece a existência de domínios do saber e da vida, que escapam ao âmbito da razão, o símbolo permite uma outra relação com o real, capaz de acolher a tradição e de fundar um discurso baseado na alteridade, do momento em que se admite um conhecimento mais do que puramente objetivo e representativo, mas em que se exprime uma experiência de vida relacional. O discurso sobre Deus, com efeito, não pode ser reduzido ou assimilado ao discurso sobre um objeto de conhecimento, por mais espiritual e abstrato que seja, mas situa-se em continuidade com o discurso a respeito de uma pessoa com que se entra em relação, cuja experiência de conhecimento e de comunhão não encontra expressão humana senão pelo recurso à linguagem simbólica.

A via metafísica

    A via metafísica, largamente praticada pela Antigüidade clássica em suas diversas formas, com base em passagens célebres da Escritura, tornou-se, hoje, pouco acessível aos diversos ambientes culturais marcados pela Modernidade. Continua, porém, não só válida, mas até primordial, enquanto constitui, de fato, o mecanismo de fundo sobre o qual operam todas as outras vias de acesso à transcendência. Nesse sentido, é indispensável considerá-la, do ponto de vista da revelação cristã, pois todo o discurso cristão sobre Deus funda-se, em última análise, no reconhecimento de uma realidade primeira existente além de todas as realidades que têm a dependência e a finitude inscritas na complexidade do seu ser, enquanto não são existentes por si mesmas, mas existem em virtude do ser recebido, distinto de sua essência.
    É importante dar-se conta de que a relação humana de pessoa a pessoa, em cujo quadro se inscreve o conhecimento de Deus, não escapa às exigências metafísicas do conhecer humano. Pelo contrário, como hoje é cada vez mais amplamente reconhecido, em especial pela tradição cristã, a razão, longe de obstar, constitui a única ponte de que humanamente dispomos para elaborar um discurso global esclarecedor de nossa vocação pessoal e comunitária.
    Esse dado, captado pela razão na experiência humana por via indireta, passando pelo que se denominou a negação do limite ou momento apofático da inteligência, assegura não só a afirmação da existência do transcendente, como serve de base e garantia de que a razão é capaz de acolher a coerência do Outro que vem a nós e está na raiz de tudo o que existe. A revelação permitirá reconhecer, no mesmo primeiro princípio, Deus, a razão de todo o existente, expressão de sua Palavra sustentada por seu Espírito. Nesse sentido, a teologia da Trindade requer o percorrer da via metafísica, sob pena de ficar no ar e ser proposta como uma idéia desvinculada da experiência humana e da existência das coisas que diretamente conhecemos.
    Tomás de Aquino resumiu, na segunda questão da Suma teológica, os referenciais da via metafísica, mostrando que, embora em si mesma a realidade primeira comporte a existência em seu conceito, por ser realidade necessária, não se nos manifesta senão a partir do que diretamente conhecemos, que nos proporciona uma base consistente para reconhecer-lhe, senão em si mesma, que é inefável, pelo menos a partir de seus efeitos: o movimento limitado, o ser causado, a contingência, a perfeição limitada, por participação, enfim, o ser finalizado, como o observamos no universo, colocam-nos em face um transcendente Outro, que preenche toda a nossa sede de alguém. Fora da base metafísica, aqui expressa nas cinco vias inspiradas na tradição filosófica helênica, todo o discurso sobre Deus carece de verdadeiro fundamento.

Conclusão

    As dificuldades encontradas na Modernidade para reconhecer a importância fundamental da experiência pessoal estão na raiz do não-reconhecimento do lugar próprio de Deus na vida humana, que tem como sintomas não só a indiferença religiosa, até o ateísmo, como também o desenvolvimento de uma religiosidade emocional ou ideológica, voltado para os bens temporais da saúde e da justiça, quando não do bem-estar e da prosperidade, mais do que para o louvor, que é o reconhecimento de Deus como Deus.
    O caminho para redescobrir existencialmente o lugar de Deus, a ser trilhado tanto pela comunidade cristã como pelos cristãos individualmente, poderia passar pelo reconhecimento da transcendência inerente à universidade dos valores verdadeiramente humanos e pela efetiva restauração da linguagem simbólica, que apontam, como uma sadia metafísica no-lo faz reconhecer, para a existência indiscutível de um Outro, a que denominamos Deus.
*Doutor em Teologia pela Universidade de Strasbourg. Docente da UNISAL - Pio XI e Faculdade de São Bento.
Extraído do site: Ciberteologia -  Revista de Teologia & Cultura Edição nº 11 - Ano III - Maio/Junho 2007 - ISSN: 1809-2888. http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/index.php/espiritualidade/deus/

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